Roberto Amaral
É preciso vomitar o ‘sapo barbudo’
Quem quiser, no que resta de esquerda brasileira, que construa
castelos de areia sobre a ilusão do fim da luta de classes, ou da
conciliação dos interesses populares com a burguesia reacionária,
rentista, quatrocentona, de nariz arrebitado e cartórios na Avenida
Paulista. Nossas ‘elites’ conservadoras têm consciência de classe, mais
aguda e mais profundamente que os dirigentes da Força Sindical. A classe
dominante (vai a expressão em desuso como homenagem ao sempre saudoso
Florestan Fernandes) conhece seus objetivos e sabe escolher os
adversários segundo a ‘periculosidade’ que atribui a cada um. Uns são
adversários passageiros, ocasionais, outros são inimigos históricos, que
cumpre o quanto antes eliminar.
Lula, considere-se ele intimamente de esquerda ou não, socialista
ou não, é, independentemente de sua vontade, esse inimigo fundamental:
de extração operária (daí, contrário senso, a boa vontade da classe
média com Dilma, pois não vem do andar de baixo) está, no campo da
esquerda, no campo popular e no campo das lutas sociais. Para além,
portanto, das reivindicações econômicas do sindicalismo, quando chegou a
encantar certos setores da burguesia que nele viam então apenas uma
alternativa sindical aos cartéis do “peleguismo”, dóceis, e do que
restava de varguismo e comunismo. Hoje, queira ou não, continua a ser o
“sapo barbudo” que a direita foi obrigada a engolir, mas está sempre
tentando regurgitar. A direita — impressa ou partidária (esta sob o
comando daquela, ambas mercantis, desligadas do interesse nacional) –,
ao contrário de certos setores pueris de nossa esquerda, age em função
de seus objetivos estratégicos e em torno deles se unifica. Recua,
quando necessário, em pontos secundários em face de dificuldades
conjunturais para avançar no fundamental, exercitando a lição leninista
do “um passo atrás, dois à frente”. Muitos de nós operam na inversão da
frase.
No governo, cingido à realidade fática da “correlação de forças”,
nosso governo (o de coalisão liderado pelo presidente Lula, que abarcou
todos os partidos de esquerda e mais os apêndices que foram do centro à
direita assistencialista) não realizou as reformas políticas, da
estrutura estatal, que poderiam, passo a passo, abrir caminho para uma
efetiva, ainda que a médio e longo prazos, alternância de poder.
Neste ponto, conciliou com mais competência que Vargas e Jango (pois
se manteve no poder e o conservou ao fazer sua sucessora), para realizar
o que não conseguiram esses seus antecessores, atingidos que foram por
golpes de Estado, do que Lula se livrou em 2005. O governo Lula
realizou, porém, o inaceitável: transferir o centro ideológico dos
interesses do Estado para as maiorias marginalizadas pelo capitalismo
predador, o que o tornou inimigo estratégico da nossa carcomida direira.
E, audacioso – rompendo com o complexo de vira-latas das ‘elites’
econômicas alienadas ao forâneo–, construiu (salvas a
Amorim-Samuel-Marco Aurélio) uma inserção soberana no cenário
internacional, rompendo com décadas de submissão aos interesses
externos, cujo exemplo maior é oferecido pelas administrações dos dois
Fernandos. Ao contrário de Jânio, que acenava no plano externo com uma
política independente para no campo interno realizar uma política
recessiva e anti-popular, Lula, que encontrou falido o país de FHC,
rompe com a submissão recessivista para colocar o Brasil na rota do
desenvolvimento com distribuição de renda, incorporando à cidadania
milhões de brasileiros até então marginalizados.
Para a burguesia reacionária essa política soou como um rompimento
com a “Carta aos brasileiros”, e era o sinal para a tentativa de
desestabilização do governo.
Tudo o que se segue é história recente, daí decorrente.
Nada de novo, portanto.
A direita brasileira foi sempre, é, e sempre será golpista. Não
podendo derrotar Vargas, impos-lhe o golpe-de-Estado de agosto de 1954,
consumado com a posse de Café Filho e o governo reacionário – leia-se
anti-nacional - de Eugênio Gudin-Eduardo Gomes-Juarez Távora. Derrotada
pelo povo na tentativa de impedir a posse de Jango, impôs-lhe o golpe
de Estado de 1964, abrindo as portas para a ditadura militar. O grande
legado histórico da UDN e da “grande imprensa”. Antes, por cinco anos,
tentara, inclusive com insurreições militares e seguidos pedidos de
impeachment (e a oposição dos jornalões de sempre) desestabilizar o
governo JK. Ora, se o presidente era um quadro do pessedismo
conservador, tinha como vice-presidente o inaceitavel Jango e sua
administração apoiada pelos comunistas. Em 1954, para fazer face ao
nacionalismo de Vargas, a direita inventou um “mar de lama”, que, como
as armas de Saddam Hussein, jamais existiu. Em1964 a aleivosia foi uma
“conspiração comunista” que a simples fragilidade do governo, derrubado
sem resistência, revelou fantasiosa. Agora, e como sempre, os herdeiros
do golpismo, aprendizes medíores do lacerdismo anacrônico, investem na
injúria e na mentira para tentar denegrir a honra do mais importante
líder popular contemporâneo.
Eis um inimigo que precisa ser destruído, como a era Vargas que FHC prometeu apagar da história.
Uma notória revista de questionável padrão ético, alimentada por
“segundo consta” e “segundo teria dito” um réu da ação penal 470,
procura, uma vez mais e não pela última vez, politizar o julgamento do
“mensalão”, tentando aproximá-lo do ex-Presidente. Este objetivo é
perseguido, incansavelmente, mediante, intrigas e futricas, desde 2005.
A imprensa levanta a tese, e, como respondendo a um reflexo
condicionado, como o cão de Pavlov, os Partidos de direita assumem a
acusação leviana como bandeira de lutas.
Estranha história: são as atuais forças da reação – PSDB e DEM (e o
penduricalho do PPS) — as fundadoras, no primeiro governo FHC, da grande
fraude que foi a compra de votos para assegurar a imoral aprovação da
emenda permissiva da reeleição. Foi o PSDB que, no governo de Eduardo
Azeredo, com os personagens de hoje, fundou o “mensalão”. Foi o DEM do
“mosqueteiro” Demóstenes quem deu sustentação à quadrilha de Cachoeira
e foi o DEM de Arruda quem instalou o “mensalão”, no Distrito Federal.
São essas as forças que apontam o dedo sujo na direção do presidente
Lula.
A história não se repete, sabemos (a não ser como tragédia ou farsa)
mas no Brasil ela é recorrente: direita impressa, meramente mercantil ou
partidária, ou seja, a direita em quaisquer de suas representações,
reiteradamente derrotada nas urnas, está sempre em busca de uma crise
política salvadora, que a leve ao poder, pelo golpe inclusive, já que
pelo voto não o consegue. A infâmia, a mentira, a calúnia, são, no
caso, preços moralmente irrelevantes que a reação brasileira está
disposta a pagar para “varrer a era Lula”.
O mundo está menor. Semana passada chegou a temida
notícia da morte de Carlos Nelson Coutinho, certamente o mais importante
filósofo de minha geração. Só nos resta chorar nossa solidão crescente.
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