CPMI do Cachoeira levanta dados que se cruzam com processo do ‘mensalão’ e alertam ao STF
O escândalo eleitoral mais ruidoso das últimas décadas, apelidado de
‘mensalão’, e a quadrilha do bicheiro Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, têm mais pontos em comum do que presumiam os magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF),
onde o julgamento da Ação Penal (AP) 470 se reinicia, nesta
segunda-feira, com o pronunciamento dos advogados de defesa de 38 réus.
Juntos, eles teriam formado uma organização criminosa destinada a
comprar votos de parlamentares, segundo a longa tese do procurador-geral
da República, Roberto Gurgel, oficializada na sustentação oral de mais
de cinco horas, na sexta-feira. Os fatos apurados por parlamentares,
agentes da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF),
porém, começam a desenhar um contorno da realidade bem diferente daquele
que sugere a peça de acusação.
Negociadores experientes conversam com Cachoeira, encarcerado no Presídio da Papuda, em Brasília, segundo fonte confidenciou ao Correio do Brasil,
“para acertar os pontos finais de uma delação premiada”, benefício
legal que poderá ser concedida ao contraventor, caso ele resolva falar o
que sabe sobre a rede de crimes que comandava no país. Cachoeira,
privado da liberdade há quase seis meses e das visitas íntimas da
mulher dele, Andressa Mendonça, desde que ela foi detida pela acusação
de tentativa de suborno a um juiz federal, há uma semana, “está vivendo
um inferno”, afirmou um advogado a colegas do escritório do jurista
Márcio Thomaz Bastos, que renunciou à defesa do bicheiro.
– O Cachoeira está perto do seu momento de quebra. Ele
começou a compreender agora, com clareza, que apesar dos recursos
financeiros de que ainda dispõe, foi abandonado por todos os seus
contatos no mundo político, jurídico e nos veículos de comunicação que,
no início, ainda tentavam enquadrá-lo como um ‘empresário na área de
jogos’, em uma cartada para evitar que o processo chegasse às conclusões
que, dia após dia, ficam mais robustas para as autoridades no
Judiciário e do Congresso, onde a Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito (CPMI) liga todas as pontas do esquema criminoso. A delação
de Cachoeira seria o elo final na cadeia de eventos que teve início com a denúncia do chamado de ‘mensalão’ – disse a fonte.
Uma das linhas de investigação mais consistentes, segundo promotor do
MPF que também prefere manter o anonimato para evitar qualquer dano ao
processo contra o esquema criminoso de Cachoeira, é aquela que
liga a quadrilha do contraventor a um processo de financiamento de
campanhas eleitorais e de enriquecimento ilícito de seus cúmplices
similar ao outro, controlado pelo publicitário Marcos Valério, principal
réu na AP 470. Enquanto Cachoeira “abastecia os cofres de seus
aliados políticos à direita”, em legendas como o PSDB, o DEM e o PPS,
“Marcos Valério trabalhava para setores da base aliada na montagem de um
possante caixa 2, pronto a irrigar candidaturas ligadas ao conjunto de
siglas de apoio ao governo”, constata o promotor público em conversa com
o CdB, neste domingo.
– A teoria de uma conspiração no Palácio do Planalto, à época do
primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, montada
para comprar parlamentares e perpetuar o governo petista no poder,
mostra-se cada vez mais frágil diante dos fatos ocorridos. Não há
nenhuma novidade. O que ocorreu em 1994, em escala anabolizada, vinha
desde 1998 com o sistema de caixa 2 montado por Marcos Valério em Minas
Gerais, destinado a pagar as contas de campanha do então candidato
Eduardo Azeredo (PSDB-MG). Ele desviava quantias vultosas do Erário por
meio de um sofisticado esquema de lavagem de dinheiro – argumenta o
promotor.
Esse esquema, batizado de ‘mensalão mineiro’, também chamado de
‘mensalão tucano’ ou ‘valerioduto tucano’, teve início na campanha para a
eleição de Azeredo – um dos fundadores, e presidente do PSDB nacional –
ao governo de Minas Gerais. O caso está detalhado em denúncia formulada
pela Procuradoria Geral da República ao STF contra Azeredo que,
segundo os autos, seria “um dos principais mentores e principal
beneficiário do esquema implantado”. Azeredo é acusado de “peculato e
lavagem de dinheiro”. Uma solução idêntica, mas de dimensões nacionais,
administrada também por Valério, teria servido como fonte financiadora
para uma série de operações destinadas ao pagamento de dívidas de
campanha dos partidos ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT).
Até onde conseguiram chegar as buscas por provas no processo da AP
470, Valério e Delúbio Soares, então tesoureiro do PT, trabalhavam em
conjunto para quitar os gastos realizados nas disputas a cargos públicos
e formar um estoque financeiro suficiente para as próximas campanhas.
Tão logo o candidato petista venceu as eleições, em 2004, com a
proximidade entre Valério e o tesoureiro do PT, ter-se-ia iniciado o
processo de captação de recursos, por meio de contratos fraudulentos em
publicidade junto às estatais e aos ministérios. Na oposição – após
décadas na condução dos destinos do país e próspero na formulação das
políticas criminosas que deram origem ao Best seller do jornalista Amaury Ribeiro Jr, Privataria Tucana – o PSDB, que conheceria por dentro o funcionamento da trama criminosa, teria em Cachoeira
o seu principal agente para denunciar a corrupção de funcionário dos
Correios, Maurício Marinho, e detonar a mais consistente tentativa de
derrubar um governante eleito no país, desde a queda do então presidente
Fernando Collor, em 1990.
– Era a oportunidade exata para bater pesado no governo, com o apoio da revista (semanal de ultradireita) Veja e demais meios conservadores de comunicação que o apoiam, entre eles os diários conservadores paulistano Folha de S. Paulo e carioca O Globo – relembra a fonte.
A tentativa falhou. Tanto a popularidade de Lula quanto a renúncia do
então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, reduziram a pressão
pela abertura de um processo de impedimento do presidente da República,
como se chegou a ventilar na época. Dirceu, no entanto, apontado como
líder da suposta quadrilha que comprava votos, sempre negou a existência
do pagamento de um ‘mensalão’ aos parlamentares da base aliada.
Tratava-se, sim, da formação de um caixa 2 para a sustentação das
campanhas eleitorais do PT e de seus aliados, como reconheceram os
principais acusados à CPMI que produziu o relatório usado pela
Procuradoria Geral da República para acusar os 38 réus na AP 470.
A proximidade entre os esquemas de Cachoeira e de Marcos Valério foi citada até em Londres, na edição deste domingo do diário britânico The Guardian, um dos mais vetustos jornais da Inglaterra:
“O escândalo do mensalão não é o único grande caso de corrupção a
aparecer nas manchetes nas últimas semanas, com outras questões
levantando a probidade das próprias organizações que deveriam estar
investigando crimes. O investigador da polícia de Wilton Tapajós Macedo
foi morto no mês passado, enquanto regava as flores no túmulo de seus
pais. De perto, dois tiros foram o suficiente. Um passou pela têmpora, o
outro através da garganta.”
Peça de ficção
A retórica de Gurgel, no entanto, enfrenta agora as críticas, ainda
que reservadas, de ministros do STF e de autoridades que acompanharam a
sustentação oral da semana passada. Ficou evidente, na peça de acusação,
a falta de provas consistentes contra Dirceu, apontado como “mentor
intelectual” do que o procurador classifica de o “mais atrevido caso de
corrupção e desvio de recursos no Brasil com o objetivo de comprar
parlamentares”. Diante dos fatos, a Corte Suprema se divide. Os vários
pontos frágeis do relatório de Gurgel, que o deixam próximo a “uma peça
de ficção”, segundo comentou um dos ministros do Supremo,
reservadamente, deixam dúvidas suficientes para que os magistrados votem
pela absolvição dos principais réus no processo.
Segundo uma das autoridades presentes ao Plenário do STF, na
sexta-feira, após ouvir a longa exposição de Gurgel, aquela era “uma
denúncia ‘pra galera”. Segundo afirmou a jornalistas, não há elementos
no processo capazes de imputar a Dirceu a acusação por crime de lavagem
de dinheiro. O ex-ministro responde por corrupção ativa e formação de
quadrilha.
– Aqueles que tinham o domínio financeiro sobre o esquema ficaram de
fora da lavagem de dinheiro. Formação de quadrilha, embora renda boas
manchetes para os jornais, não leva a nada – afirmou. Foram enquadrados
por lavagem de dinheiro os deputados João Paulo Cunha (PT-SP) e Pedro
Henry (PP-MT), e o ex-diretor de Marketing do Banco do Brasil Henrique
Pizzolato.
A dificuldade do STF para julgar a AP 470 sem esbarrar no
envolvimento dos tucanos em ação semelhante, nas Minas Gerais, também
foi citada em matéria do conservador El Clarín, de Buenos
Aires: “Embora seja uma sentença muito aguardada por alguns setores do
governo e da oposição, não parece simples. Um dos 11 juízes do Tribunal
tem denúncias contra ele. Trata-se de Gilmar Mendes, de quem se diz ter
sido beneficiado por um esquema semelhante de corrupção montado em 1998
em Minas Gerais pelo ex-governador daquele Estado, o social-democrata
Eduardo Azeredo. Coincidentemente, os circuitos de dinheiro que
impulsionaram esse governador também foram comandados pelo publicitário
Marcos Valério.”
Para a rede norte-americana de TV CNN, os partidos de
direita falharam completamente na tentativa de desgaste aos governos
progressistas liderados pelo PT, que assumiram os destinos do país a
partir da metade da última década. “A atual presidente Dilma Rousseff,
também do Partido dos Trabalhadores, nunca foi conectada ao escândalo.
Na verdade, Dilma Rousseff goza de uma forte taxa de aprovação de 77%. A
visão de muitos brasileiros é que ela tomou uma posição firme contra a
corrupção, despedindo seis ministros suspeitos de desvios”, afirma a
emissora.
Valério preso
Um dos 38 réus no processo do ‘mensalão’, o empresário Marcos Valério
Fernandes de Souza tem os seus dias de liberdade contados, segundo um
dos analistas do julgamento em curso. Acusado de ser o operador do
esquema de caixa 2 tanto do PSDB quanto da base aliada do governo, no
Congresso, Valério pode ser sentenciado a mais de 140 anos de prisão em
razão das dez ações criminais a que responde na Justiça Federal em
Minas, além de outros cinco processos criminais na Justiça estadual
mineira, entre eles por envolvimento no ‘valerioduto tucano’, e outro no
Judiciário do Estado da Bahia.
A maior parte destas ações resulta das próprias investigações que
deram origem à denúncia do ‘mensalão’ e que foram desmembradas. Com
isso, o Ministério Público Federal (MPF) em Minas já conseguiu duas
condenações para o empresário que, juntas, somam 15 anos de prisão. A
primeira sentença, dada pela Justiça no ano passado, rendeu seis anos e
dois meses de condenação por crime contra o sistema financeiro, mas o
MPF recorreu, pedindo o aumento da pena.
A segunda condenação, de fevereiro, é fruto de investigações
originadas em torno do ‘mensalão’ e rendeu mais nove anos e oito meses
de prisão ao empresário por sonegação fiscal e falsificação de documento
público. Além de Marcos Valério, foi condenado seu ex-sócio nas
agências SMP&B e DNA Cristiano de Mello Paz, que também é réu na AP
470, mas a defesa recorreu e o caso ainda vai ser analisado pelo
Tribunal Regional Federal da 1.ª Região. Nas duas condenações, o
Judiciário concedeu aos acusados o direito de recorrer em liberdade.
Valério ainda enfrenta na Justiça Federal em Minas acusações de
lavagem de dinheiro, evasão de divisas, sonegação fiscal, fraude
processual, formação de quadrilha, falsificação de documentos públicos e
uso de documentos falsos. Na Justiça mineira, responde ainda a
processos por crimes contra a ordem tributária, contra a fé pública e
lavagem de dinheiro. Já na Bahia o empresário responde a ação por
grilagem de terras e falsificação de documentos e chegou a ficar 12 dias
preso no fim do ano passado, em razão das acusações. A legislação
brasileira, no entanto, impede que qualquer condenado passe mais de 30
anos na prisão, mas ele poderá ser preso logo após a decisão do STF.
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