Por Assis Ribeiro
Dois de julho: Independência do Brasil (na Bahia)
Paulo Costa Lima
Poucas pessoas fora da Bahia conhecem a força do 2 de julho. É uma
falha enorme de informação histórica, pois trata-se do processo de
independência do Brasil, e não da independência da Bahia, como até hoje
muita gente fala. Uma coisa é dar o grito do Ipiranga, outra coisa é
garantir pleno domínio sobre o território nacional.
Entre as duas pontas, uma guerra. A guerra da Bahia, onde brilhou o
heroísmo popular, além de lideranças como Labatut, Lima e Silva, João
das Botas, Maria Quitéria, entre tantos outros. Em carta a José
Bonifácio, Labatut registra: "Nenhum filho de dono de engenho se alistou
para lutar". A consciência da possibilidade de uma nação surgiu de
baixo.
Foram meses de luta, batalhas em diversos pontos do Recôncavo Baiano,
sendo a mais famosa a de Pirajá, onde segundo consta, o corneteiro
Lopes decidiu a vitória tocando 'avançar' quando havia sido instruído
para fazer o contrário. Vitória brasileira.
Que espécie de sol é esse - 'brilha mais que no primeiro'? Que
espécie de chamado convoca e reúne cerca de 500.000 pessoas em Salvador a
cada 2 de julho, há 184 anos, em torno de um cortejo, que na verdade é
espelho vivo de nós mesmos, uma construção existencial baiana, encontro e
pororoca de atitudes culturais as mais distintas?
Na verdade, basta olhar o carro do caboclo para exemplificar o que é
mesmo diversidade: tem lança de madeira apontada para um dragão, cocar,
muitas penas, armadura de ferro em estilo medieval, baionetas, anjinhos
barrocos, placas com nomes de heróis, colares diversos, alforjes,
bandeiras, folhas e mais folhas, entre outras tantas coisas.
Não é uma festa para se ver pela televisão ou para entender através
da mídia. Não adianta focalizar em momentos, mesmo que solenes e
oficiais, reunindo poderes constituídos e povo. É uma festa para
participar. Só sabe do que se trata quem vai lá, quem sente a emoção
fluindo, quem vê o interesse do povo em festejar e manter a tradição,
desde a alvorada no largo da Lapinha até o Campo Grande.
No meio de tudo isso a figura inesquecível de Maria Quitéria, uma
mulher que se fez soldado, e que foi oficialmente aceita por D. Pedro I
como membro do Exército Nacional, com direito a ostentar sua insígnia
pelo resto da vida. Lutou bravamente, desafiou a todos, inclusive ao
pai, que a queria longe da luta.
Segundo a historiadora inglesa Maria Graham, que deixou registrado um
perfil da heroína, a moça era bastante feminina, ninguém duvidava de
sua virtude mesmo depois de meses de acampamento com os homens. Gostava
de comer ovo ao meio dia e peixe com farinha no jantar. Fumava um
cigarro de palha após as refeições. Entendia as coisas com rapidez e
naturalidade. Depois da guerra voltou para sua terra, casou-se e teve
uma filha. Entrou em Salvador acompanhando o General Lima e Silva e foi
agraciada com uma coroa de flores no Convento da Soledade.
É mesmo impressionante verificar que o espírito de 1823, da entrada
triunfante de nossos combatentes e da visão libertadora compartilhada
por Recôncavo e Cidade da Bahia, tenha sido preservado durante todo esse
tempo, e que ainda continuará dessa forma por muitos e muitos anos.
Qual o segredo da longevidade?
Não existe segredo. Enquanto a população sentir que o 2 de julho lhe
pertence, haverá 2 de julho. E portanto, para falar disso que emana da
festa, devemos esquecer os chavões do civismo, aquela noção de
bandeirantes fardados e perfilados, pois o território do nosso civismo é
outro - é mais caboclo. E não é território de exclusão, celebra caboclo
e cabocla. Portanto, entre folhas, armadura, dragão e celebração o que
emerge é o próprio território cultural da Bahia. Território matriz que
não está interessado em meros separatismos, e sim na invenção de uma
nova idéia de coletivo.
Na verdade esse civismo de pertencimento, que não depende de efígies
gregas, máximas latinas ou princípios positivistas (mas que também não
os rejeita), se realimenta a cada ano com a própria participação dos
atores e autores populares, os quais garantem permanência à celebração,
simplesmente por se sentirem parte dela.
Muito antes do atual discurso sobre inclusão, lá estava o símbolo
pronto de um País, o qual só lentamente vai se aproximando da densidade
da construção simbólica de origem. Coisas que eram apenas vetores em
1822-23 foram aos poucos virando realidade - abolição, república,
protagonismo feminino...
Na verdade, na verdade, o mais bonito é pensar que o 2 de Julho é o
nosso destino, e que certamente um dia estaremos plenamente à altura da
força e dignidade que evoca e constitui.
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