segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Os Governantes e Suas Escolhas

Do Luis Nassif

No primeiro post de avaliação do governo Lula (clique aqui), houve um bom comentário da Cláudia Stefani (clique aqui) sobre o conceito de "oportunidade perdida". Dizia ela que esse conceito não é bem aceito pela historiografia devido ao fato de que as oportunidades acabam dependendo das circunstâncias do momento histórico. Se existem as circunstâncias adequadas, as oportunidades se realizam. Se não existem, não adianta reescrever a história no condicional.

Ela respondia a um artigo onde eu lembrava "oportunidades perdidas" que menciono no livro "Os Cabeças de Planilha": uma, no início da República, outra na segunda metade dos anos 60; a terceira, e maior, na partida do Real. Nos três momentos, perdeu-se a oportunidade de criar um mercado de massas, capaz de lançar o país em uma nova dinâmica de desenvolvimento.

Para Cláudia, na virada da República a não inclusão social dos libertos – um dos fatores que levaram à perda da oportunidade, segundo entendo –, se deveu ao fato de que a jovem República tinha outras prioridades. As circunstâncias culturais da época não permitiam às elites aceitarem ex-escravos nem colocar a inclusão como prioridade. A vizinha Argentina recorreu ao "branqueamento" da raça através de medidas radicais. O Brasil contemporizou, deixando de lado, não incluindo. Assim, mesmo a não inclusão dos libertos teria sido um avanço, do lado brasileiro, em relação ao argentino.

É uma discussão antiga, mas sempre uma boa discussão, especialmente quando amparada em argumentos sólidos e bem colocados como os da Cláudia.

Mesmo assim, discordo. Se as circunstâncias sempre se impusessem sobre os personagens, a rigor não haveria diferenciação entre os governantes: todos seriam guiados pelas circunstâncias. Não haveria a figura do Estadista, o homem que consegue enxergar o caminho e colocar o país na nova rota, aproveitando melhor as circunstâncias do que o não-estadista. Ou seja, as circunstâncias existem para todos, mas apenas alguns conseguem realizar o futuro.

Na época da Proclamação da República, as circunstâncias permitiram o aparecimento de um pensamento diferenciado de Joaquim Nabuco e André Rebouças, das teorias anti-raciais de Manoel Bonfim, mas não foi o suficiente. O país não estaria preparado ou foi vítima de um acúmulo de opções erradas, culminando com as malandragens do Ministro da Fazenda Rui Barbosa, que levaram ao "encilhamento"?

Ora, havia uma febre de industrialização, uma reorganização da poupança, as experiências (ainda que incipientes) de criação de um mercado de capitais. A bandeira industrialista se impunham trazida pelos ares de renovação da República. Não fosse a tragédia do encilhamento – fruto de escolhas erradas de Rui Barbosa, movidas por interesses menores - , consolidar-se-ia o novo modelo econômico, que – a exemplo dos Estados Unidos de 50 anos antes – teria necessidade de ampliar o mercado de consumo de massa criando uma nova dinâmica. Os erros levaram a quatro décadas de estagnação.

Mesmo no caso vizinho da Argentina, o que diferenciaria a elite visionária de fins do século 19, das sucessivas gerações que, ao longo do século 20, dissiparam todo o potencial acumulado do país?

Segundo Cláudia, o "branqueamento" proposta pela elite argentina visava emular os países europeus. Mas a mesma elite que queria o "branqueamento" – estimulou a vinda dos "olhos azuis", acabaram chegando turquinhos e quetais – também tornou obrigatório o ensino básico e abriu as escolas públicas aos imigrantes que chegavam, embora lhes negasse a posse da terra. Unificou a Argentina, permitindo que o potencial de recursos financeiros e humanos de Buenos Aires se estendesse para outras regiões.

Enxergou a tomada dos pampas e aproveitou as oportunidades abertas pelas novas tecnologias – tanto na produção quanto no resfriamento da carne para exportação para a Europa – para tornar a Argentina a quarta ou quinta economia do mundo e a primeira, no Novo Mundo, a abolir a miséria absoluta.

Implementar seu plano, superar o pesado regionalismo argentino, obrigar Buenos Aires a abrir mão da exclusividade sobre os recursos da alfândega foi um trabalho ciclópico que dependeu de um conjunto de opções e decisões bem sucedidas. Como imaginar que um trabalho de tal complexidade teria o mesmo resultado, independentemente de que estivesse na sua implementação? Após esses 15 anos, Buenos Aires continuou querendo ser Europa, mas as novas elites perderam totalmente o fio da meda que conduziria o futuro.

Deixemos a Argentina de lado. Temos a história passando na nossa frente aqui no Brasil, em tempo real, para conferir o papel dos governantes e suas circunstâncias.

Física e ciências sociais

E aí seria interessante se os cientistas sociais, analistas políticos e economistas fossem buscar na física maneiras diferentes de entender a dinâmica social.

Em geral tendem a ver essa dinâmica como um "processo", algo cumulativo que pode se acelerar mais ou menos de acordo com as circunstâncias, mas sempre seguindo uma linearidade, uma continuidade.

Nessas análises, não conseguem ser encaixados os momentos de ruptura, que podem lançar um país em um novo patamar de desenvolvimento ou levar uma nação ao suicídio. Para eles, tudo é linear, como a máquina de prever o futuro de Monteiro Lobato no livro "O presidente negro". Futuro = passado + presente; se tenho o passado e o presente, posso projetar o futuro.

Não é bem assim. Todas as circunstâncias que projetam o desenvolvimento podem estar presentes em um país. Mas o desenvolvimento só se realiza em sua plenitude quando aparece o Estadista (uma pessoa ou um grupo de visão diferenciada) que junta os ingredientes, enxerga o todo, faz as escolhas corretas e, principalmente, monta a estratégia política que permitirá o nascimento do novo (que, por ser novo, não tem influência) sobre o antigo (que, embora decadente, mantém o poder).

Cabe a ele juntar as partes e mostrar o novo todo. Quando as partes conseguem se enxergar como parte de um conjunto maior, cria-se uma sinergia nova, uma nova dinâmica fundamentalmente diferente do momento anterior, quando as partes existiam mas de forma independente e descosturada.

O caso chinês é exemplar. Antes, houve o investimento em educação, a inclusão social inicial que tirou bilhões da miséria absoluta, a superação da "revolução cultural", a experiência capitalista de Hong Kong.

Nenhum historiador ousaria afirmar que a dinâmica da sociedade chinesa nas duas últimas décadas obedeceu a uma linearidade em relação aos períodos anteriores. O país aproveitou cada circunstância desenvolvida nos períodos anteriores, mas quando os dirigentes chineses juntaram todas as circunstâncias em torno de um plano estratégico e de um objetivo claro de desenvolvimento, mudou o patamar.

É totalmente diferente, é um crescimento exponencial, com todas as forças do país unificadas pelo projeto maior de desenvolvimento nacional. E esse modelo foi montado em cima de decisões, de escolhas. O nacionalismo chinês poderia ter levado o governo a uma posição xenófoba em relação às empresas estrangeiras; ou a uma posição subserviente. A escolha foi atrair as empresas de fora, oferecer a possibilidade de participar dos ganhos do novo mercado que se formava, da mão de obra, do câmbio. Mas, em contrapartida, transferir tecnologia, montar parcerias com empresas chinesas.

Em 1994 – como mostro em meu livro – China e Brasil eram as bolas da vez dos investimentos internacionais, em um momento em que as multinacionais redefiniam radicalmente sua lógica de investimento.

A China negociou corretamente seu mercado interno. O Brasil implementou uma abertura financeira equivocada que provocou 12 anos de estagnação. Um foi vitoriosa, outra derrotada. As circunstâncias na época não permitiriam a FHC adotar decisões corretas? Claro que sim. Dispunha da popularidade de ter vencido a inflação, os melhores quadros técnicos do país, a visão do potencial do mercado de massas que se formaria dali pela frente. Jogou tudo pela janela para garantir, com o câmbio controlado, o fortalecimento de grandes grupos financeiros que garantiriam o futuro político do partido e uma vida de riqueza para os implementadores do modelo.

Supor que as circunstâncias definem per si o modelo é ignorar a existência de linhas alternativas, que permitem a escolha; que escolhas certas levam ao desenvolvimento; que escolhas erradas levam ao desastre.

Por si, as circunstâncias não moldam uma trajetória previsível. Nos momentos de ruptura, o futuro ainda não foi desenhado, há uma balbúrdia, a mistura do bolo ainda não é clara. O futuro do país dependerá, então, da capacidade de acerto ou de erro dos governantes nas suas decisões.

Se não fosse assim, a Irlanda dos anos 90 não teria perdido o bonde no final dos anos 2000. Nem Portugal, que conseguiu um enorme salto nos anos 90 graças à União Europeia mas também aos acertos das medidas implementadas na época, em torno de uma visão de futuro clara –que esmaeceu nos últimos anos.

Lula e suas circunstâncias

As circunstâncias que levaram o Brasil ao salto dos últimos anos já estavam presentes desde fins dos anos 90, algumas plantadas nos anos 80 ainda no governo Figueiredo, outras ganhando expressão nos dois fatos políticos mais relevantes do período: a Constituição de 1988 e o primeiro ano do governo Collor.

No meu "Os Cabeças de Planilha" faço uma síntese dessas ideias-força, desses "fatores portadores de futuro", – na denominação dos estrategistas políticos.

Relaciono os diversos grupos de conhecimento acumulados nas últimas décadas – de saúde, gestão, inovação, políticas sociais -, os avanços institucionais – mercado de capitais, multinacionais brasileiras, as cadeias produtivas, o sistema de apoio às pequenas e micro empresas -, a nova diplomacia que se desenhava, a recuperação da autoestima, dos valores culturais nacionais. Previa que todas essas circunstâncias levariam a um novo modelo assim que houvesse a ruptura trazida pela crise final do neoliberalismo (o livro foi lançado em 2005, em cima de artigos publicados nos anos anteriores e a crise prevista aconteceu em 2008). E dizia que esse potencial somente se realizaria quando, junto com a crise, aparecesse o Estadista capaz de mostrar o todo, colocar os grupos lado a lado e passar a ideia de Nação, do todo.

Jamais supus que, poucos anos depois, do Lula confuso do primeiro mandato emergisse o Estadista do segundo mandato.

A crise de 2008, de fato, permitiu romper o círculo de ferro que amarrava o futuro ao passado. Mais à frente me permito analisar alguns "se" em relação à crise. A crise abriu espaço para o novo modelo. Mas o resultado final dependeu das escolhas feitas no período.

Com FHC, as escolhas teriam sido outras e os resultados completamente diversos.

Esse capítulo foi uma espécie de adendo ao primeiro, tentando responder às boas colocações da Cláudia e explicitar melhor a maneira como entendo o papel de Lula na construção dessa nova etapa.

Sobre isso, falarei mais adiante. 

Leia mais:

Balanço de Lula 1: a criação de um mercado de massas

Comentário de Cláudia Stefani



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