segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Comissão da Verdade Saindo do Papel

Finalmente, parece que teremos um espaço para julgar os crimes da ditadura. Esperançosos....

Da Carta Capital

Nascida em meio a uma polêmica institucional, a Comissão da Verdade, a ser criada para investigar os crimes e os criminosos da ditadura militar (1964-1985), começa a ganhar estatura e estrutura dentro do governo da presidenta Dilma Rousseff. Antiga demanda das entidades de defesa de direitos humanos, sobretudo às ligadas às famílias de desaparecidos políticos, a simples idéia de uma comissão do gênero tem provocado urticária entre os comandantes militares, embora seu principal aliado, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, tenha capitulado ante a posição oficial do governo sobre o tema. Até o final de junho, uma série de medidas será tomada para, finalmente, tirar a idéia da comissão do papel.

Do ponto de vista prático, o processo de instalação da Comissão da Verdade foi deflagrado internamente no Ministério da Justiça há pouco mais de um mês, quando, discretamente, um grupo liderado pela americana Marcie Mersky se instalou em uma sala cedida pela Comissão de Anistia do Ministério da Saúde. Marcie é diretora do respeitado Centro Internacional de Justiça de Transição (ICTJ, da sigla em inglês), organização não governamental especializada em auxiliar países, sobretudo da América Latina, a resolver pendengas históricas com passados autoritários. Contratado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o ICTJ atuará como consultor nessa área para o Brasil nos próximos seis meses.
Como parte dessa consultoria, o ICTJ irá realizar uma pesquisa sobre as comissões da verdade no mundo, como funcionaram, quais resultados obtiveram e encadear os relatos das experiências. O objetivo é também produzir um livro para distribuir nas universidades brasileiras de maneira a criar uma literatura sobre o tema no Brasil. Como último ato de trabalho, a ONG irá organizar, em julho, uma conferência sobre direito à memória, verdade e reparação, a ser realizada em Brasília. O objetivo da consultoria é montar uma rede de organizações ligadas às questões de justiça de transição, de modo a aproximar novos contatos e fomentar a troca de informações, sobretudo com outros países da América Latina que sofreram com ditaduras.

“Justiça de transição é um conceito pouco entendido, sobretudo no Brasil”, avalia Marcie Mersky. Segundo ela, a discussão sobre o assunto no País ficou muito restrita à questão do direito à verdade e à memória. “Há outros fatores envolvidos, como o direito à reparação, à proteção judicial das testemunhas e a punição daqueles que cometeram crimes de lesa-humanidade, como a tortura”, afirma. Ela informa, ainda, que o ICTJ irá produzir uma espécie de manual sobre o tema para orientar estudiosos, técnicos e jornalistas envolvidos na elaboração e discussão da Comissão da Verdade.

“O objetivo é melhorar as práticas de apuração e manuseio de documentos, além de preparar o ambiente para as testemunhas se sentirem protegidas”, diz Marcie Mersky. “Assim, poderemos construir parâmetros a serem usados para a proteção efetiva das fontes de informação”, garante a diretora, responsável pelo gerenciamento de projetos semelhantes, recentemente, na Guatemala e no Peru pós-Alberto Fujimori. Ela lembra, contudo, que a ação do ICTJ é limitada. “Não estabelecemos modelos, mas apenas damos consultoria para os países interessados”, explica. E aí está o nó da questão, segundo Marcie: o grande problema das comissões da verdade é que nem sempre as recomendações, uma vez consolidadas, são incrementadas pelos governos.

No caso do Brasil, o foco de resistência ainda é a caserna, embora nenhum dos militares hoje na ativa tenha idade para ter participado dos eventos fundamentais do golpe de 1964. No entanto, a doutrina da chamada “revolução”, baseada no anticomunismo e nas paranóias de segurança nacional da época da Guerra Fria, continuam em voga nos quartéis. Como nenhum governo civil pós-ditadura se interessou em mexer na formação básica dos militares, uma geração passou a contaminar a outra, sem intermediação do poder civil, nas escolas e nas academias militares. Assim, o exemplo sempre vem de cima, vide a reação dos comandantes das forças à terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e as recentes declarações do general José Elito Siqueira, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), de desprezo histórico à questão dos mortos e desaparecidos políticos.

No caso do PNDH-3, onde se previu a criação da Comissão da Verdade para apurar os crimes e identificar os criminosos da ditadura, as vivandeiras dos quartéis foram atiçadas por ninguém menos que o ministro da Justiça, Nelson Jobim. Afeito a usar fardas, embora essa não seja uma atribuição do cargo, Jobim passou também a mimetizar as idéias dos militares os quais deveria comandar. Em dezembro de 2009, quando o PNDH-3 foi lançado, ele ameaçou se demitir caso o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva não revisse as idéias esquerdistas do plano. Imposto a Dilma Rousseff por Lula, Jobim, no entanto, teve que mudar de lado (aliás, uma de suas especialidades) para continuar no cargo. Desde janeiro, passou a apoiar a criação da Comissão da Verdade.

O empecilho fundamental a essa discussão continua sendo a dificuldade de, a partir do ordenamento jurídico nacional, levar aos tribunais os torturadores, estupradores e assassinos que se aproveitaram da Lei de Anistia, de 1979, para se esconder da Justiça. Instado a rever essa situação, no ano passado, o Supremo Tribunal Federal optou por manter intocada a impunidade dos criminosos comuns da ditadura. A Ação do STF, onde estavam nove ministros indicados por Lula, deixou o Brasil isolado no continente, marcado pela ação ostensiva de países vizinho contra os torturadores e homicidas das ditaduras locais. Essa posição, aliás, levou o Brasil a ser condenado na Corte Interamericana de Justiça, instalada na Costa Rica.

Apesar da tardia adesão de Jobim, contudo, a criação da Comissão da Verdade são favas contadas no governo Dilma, mas sob orientação da secretária especial de Direitos Humanos, Maria do Rosário, e do presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, também secretário nacional de Justiça. Para uma das principais estudiosas do conceito de Justiça de Transição no Brasil, a professora Deisy Ventura, do Instituto de Relações Internacionais da USP, o principal impeditivo para se punir os criminosos da ditadura é a presença, ainda, de figuras importantes do regime militar na vida política brasileira, como o senador José Sarney (PMDB-AP), aliado de primeira hora dos golpistas de 1964. “Coisas assim dão a impressão de ter sido muito natural o Brasil ter vivido sob uma ditadura”, explica a professora.

Leandro Fortes

 

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