segunda-feira, 28 de junho de 2010

Reportagem de Rodrigo Gasparini

Mais de 10 mil trabalham e vivem na madrugada

Rodrigo Gasparini
Notícia publicada na edição de 27/06/2010 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 2 do caderno D - o conteúdo da edição impressa na internet é atualizado diariamente após as 12h.
Era uma das geladas madrugadas do início de junho. Quando faltavam quatro minutos para as cinco horas da manhã, uma voz feminina solta a frase mais ouvida na estreita sala anexa à Unidade Pré-hospitalar da Zona Norte: “Samu de Sorocaba, qual a emergência?” Em segundos, o tom afável torna-se preocupado. “Põe a mão na frente da boca dela, vê se você sente a respiração”, é a segunda frase. E quando a atendente fala pela terceira vez, já está transferindo a ligação para a médica de plantão, com o seguinte recado: “Doutora, ela acha que a mãe está morta”.

A médica Irma Saboya pega o telefone quase ao mesmo tempo em que a sirene é acionada. Surge na sala, então, outro médico: Charles Watanabe. Ele deixara o local havia poucos minutos, para descansar. Com a emergência, porém, retorna ao posto e libera Irma para atender o caso. A ambulância carregando três profissionais (médica, enfermeira e auxiliar de enfermagem) chega à casa no Jardim Santo André 2, onde uma mulher de 44 anos está desmaiada na cama, coração parado. A equipe rompe portão adentro e mal tem tempo de notar o agitado homem que está na calçada. De calça jeans e chinelos de dedo, ele enfrenta chorando, em desespero e sem camisa, o vento cortante que torna a sensação térmica ainda mais baixa que os 15 graus da avenida xis. É o marido, despertado no meio da noite enquanto a esposa tinha o mal súbito.

Essa foi uma das nove ocorrências atendidas pelo Samu na madrugada em que o Cruzeiro do Sul acompanhou o trabalho da unidade sorocabana do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, programa do Governo Federal, mantido na cidade pela Prefeitura. A central do Samu é um espaço simples e sem luxo: nada de aparelhos de rádio ou TV, por exemplo, que poderiam tirar a concentração. Na parede, um detalhado mapa com as ruas de Sorocaba divide o mesmo prego onde um terço está pendurado. Há dois relógios e três calendários, um estampado com a propaganda de uma papelaria e dois com imagens de Nossa Senhora. Sobre o armário, troféus pelas participações do Samu nas 24 horas de caminhada de Sorocaba. Na janela da porta, as boas-vindas são dadas por um ursinho de pelúcia.

É nesse local que funciona o coração do serviço, onde você será atendido se ligar 192. Mas há outros espaços, como o destinado ao descanso de enfermeiros, auxiliares, médicos e motoristas, além de uma espécie de sala de estar, com sofá, TV, café, leite e, naquela noite, pipoca. Os funcionários são concursados pela Prefeitura e se dividem em funções variadas. Há quem atenda às chamadas, quem fale via rádio com os médicos e enfermeiros nas ocorrências. E há sempre um médico de plantão, pronto a dar orientações por telefone aos familiares das vítimas enquanto o socorro está a caminho, além de trocar informações com as equipes que estão na rua.

As viaturas próprias do Samu são divididas em dois modelos: Alfa e Beta. A primeira é utilizada nos casos mais graves e vai com médico, enfermeiro e auxiliar de enfermagem. A segunda é para ocorrências de menor gravidade e carrega apenas o auxiliar. O serviço também é responsável por controlar as ambulâncias brancas, aquelas comuns, utilizadas somente para o transporte de pacientes.

A primeira parada cardíaca

Faltavam quatro minutos para a meia-noite quando a sirene tocou. Era o chamado para socorrer um homem de 37 anos, vítima de parada cardíaca, na Vila Barcelona. Os profissionais do Samu o encontram caído sobre o chão de lajota, na sala da casa. O trabalho é rápido e feito de maneira sincronizada, sob o comando de Irma. A equipe intuba o paciente, providencia a respiração artificial e inicia a massagem cardíaca, tudo com uma tranquilidade de chamar a atenção.

Pouco depois do Samu, chegam os Bombeiros também acionados pela família. Embora a presença de ambos seja desnecessária (“é um carro a menos na cidade”, reclamaria a médica posteriormente), um soldado acaba ajudando no trabalho. Os curiosos também chegam: quatro pessoas aparecem em menos de cinco minutos. O vizinho abre timidamente a janela e espia a movimentação na rua, o olhar assustado misturado ao sono.

Naturalmente tenso, o resgate ganha componentes que obrigam os socorristas a terem controle emocional ainda maior. Como a presença da mãe da vítima, que assiste a tudo de perto, calada, encolhida em seu casaco, a cabeça protegida pelo gorro de lã. E uma menina, de não mais que dez anos de idade. Encostada na parede do corredor que liga sala e cozinha, ela vê tudo acontecer em meio aos seus brinquedos: a boneca sentada sobre a geladeira infantil, a almofada com estampas do desenho animado Pica-Pau e os óculos infantis cor-de-rosa, repousados sobre a estante.

São detalhes que não podem ser supervalorizados por quem está na missão, mas que também não passam despercebidos. “Tinha uma criancinha lá no local, que eu pedi para sair de lado”, revelaria depois Renata Aneas, a auxiliar de enfermagem que esteve na ocorrência, referindo-se à menina. Depois de algum tempo aplicando massagem cardíaca, Renata e os outros profissionais abrem passagem para Irma usar o desfibrilador. A cena é como nos filmes. Todos se afastam e a médica encosta os aparelhos no peito da pessoa enfartada, aplicando-lhe um choque potente. A ação dá certo, os batimentos cardíacos voltam e o homem é transferido para a Santa Casa. O trabalho do Samu finda quando ele entra no hospital.

Com criança, é sempre pior

Se a simples presença da criança na ‘cena’ (que é como os socorristas chamam os locais das ocorrências) já é motivo de preocupação para os profissionais do Samu, imagine então quando as vítimas são os próprios pequenos. Pois é justamente o chamado de uma mãe que provoca momentos de tensão durante a madrugada. Às 3h25, o telefone toca e a mulher do outro lado da linha diz que o filho de quatro anos está em convulsão. A ligação é imediatamente transferida para o médico Charles, que se tranquiliza ao ouvir o choro da criança, sintoma claro de que o menino não convulsionava. “Deixa ele em pé e não dê nada para comer”, orienta, enquanto manda uma ambulância Beta para o local.

Toda a ação não dura mais do que três minutos e o caso parece ter sido solucionado sem maiores percalços. Mas a tensão volta a tomar conta da sala 15 minutos depois, pois o motorista informa via rádio que encontra dificuldades para localizar a casa da criança, no Jardim Montreal. Ao mesmo tempo, a mãe volta a telefonar várias vezes, preocupada com o estado de saúde do filho e cobrando a presença da ambulância. A situação faz com que toda a equipe que trabalha na central do Samu passe a agir no caso, seja tranquilizando e orientando a mulher ou procurando no mapa a ajuda necessária ao motorista. O alívio vem 13 minutos depois, quando o auxiliar de enfermagem chama pelo rádio e conta que o menino já passava bem e seria medicado.

“É incrível como criança mexe com o plantão, em qualquer situação. Às vezes, ela nem chegou a óbito, mas é uma coisa que todo mundo fica arrasado”, diz Renata, que já flagrou mãe e filho mortos num acidente de ônibus. Situação bem pior viveu Irma, ela mesma mãe de uma menina de quatro anos de idade. No final da madrugada do domingo em que se comemora o Dia das Mães, atendeu a um caso em que a criança se afogou e morreu sufocada enquanto dormia na cama com própria a mãe. “Já estava dura, não tinha o que fazer. Acabou o meu Dia das Mães. É contra a natureza, vai contra a lei natural das coisas, uma morte estúpida”, lamenta. Irma não conseguiu mais trabalhar naquele dia. Pediu licença, arrumou um substituto e voltou para casa.

A segunda parada cardíaca

A noite segue gelada, trazendo por consequência ocorrências minguadas e um clima tranquilo, quase entediante, entre os funcionários da central do Samu. Até que o telefone toca às 4h56, a filha suspeitando que a mãe está morta. A equipe rompe portão adentro e mal vê o homem sem camisa na porta. Ele anda de um lado para o outro e repete frases desconexas, todas tratando da possível morte da esposa. Parece querer se preparar para o pior. Não há luz elétrica no quarto do casal e quando a bateria da lanterna do Samu perde a carga, o repórter fotográfico do Cruzeiro, Erick Pinheiro, passa a iluminar o ambiente com uma pequenina lanterna que trazia consigo.

O homem entra na residência, justifica a ausência de luz (“um problema no fio”), assoa o nariz no tanque e diz para si mesmo que seria bom providenciar um lampião, embora não o faça. Pega o cigarro e retorna à calçada, mas volta em seguida para vestir uma camisa. Em momento algum entra no quarto onde a esposa recebe socorro. Elege a própria calçada como seu posto. A moça que ligara para o 192 está grávida e mora na casa com seus dois filhos: uma menina de oito anos e um garotinho de cinco. Sentada no sofá da sala, a mais velha chora e evita olhar para dentro do quarto; o caçula parece não compreender bem o que está havendo. É um misto de susto e curiosidade, denunciada por algumas espiadelas.

A notícia se espalha e começam a chegar parentes e amigos. Dentro do quarto, a equipe continua batalhando para salvar a vida da mulher enfartada. Há revezamento para efetuar a massagem cardíaca. Irma resolve, então, utilizar o desfibrilador e se repete a cena que já havia acontecido naquela madrugada. O trabalho continua até a médica pedir para que a massagem cardíaca seja interrompida. Ela olha para a tela do aparelho que indica os batimentos cardíacos. Pega a lanterna, abre o olho direito da vítima, examina suas pupilas. Repete o procedimento no olho esquerdo. Todos a observam, à espera do comando que virá a seguir. É apenas um gesto, suficiente para a equipe entender que não havia mais nada a ser feito. Irma cruza os braços da mulher e puxa o cobertor, cobrindo-a até o pescoço.

Os socorristas deixam o quarto em silêncio, carregando os equipamentos de volta para a ambulância. A moça grávida recebe a notícia abraçada aos dois filhos, a partir daquele momento órfãos de avó. Fora da casa, os tons chorosos aumentam na mesma medida em que mais pessoas chegam. O homem que acabara de perder a esposa vê a neta sofrendo e se junta à dor dela. “Vamos dar uma volta, minha filha, que isso aqui está muito feio”, diz, pondo a mão sobre o ombro da criança. Os dois saem andando em meio ao frio e à escuridão, que parece insistir para não ir embora, mesmo com a manhã se aproximando.

O trabalho do Samu termina, o abatimento é latente nos rostos do pessoal da equipe. Assim como era a alegria quando, no começo da madrugada, aquelas mesmas pessoas haviam salvado a vida de um jovem em situação semelhante. “A pior parte é as pessoas que ficam”, havia dito a médica Irma entre um e outro atendimento. “O que mexe comigo é ver o que a família sofre”, completara Renata. A ambulância retorna à base com o dia amanhecendo. É hora de se limpar, de repor o material, de descansar o que for possível. Até que a sirene toque novamente.

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