Proposta que destina à reforma agrária terras flagradas com
mão de obra escrava vai a votação terça-feira na Câmara, mas há
obstáculos na estrada
São Paulo – Menos de um mês após a aprovação do Código Florestal, a
Câmara dos Deputados, em Brasília, volta a ser o centro de uma votação
importante para o país. À diferença da ocasião anterior, em que prevaleceram interesses particulares sobre as necessidades coletivas, desta vez os parlamentares têm a chance de aprovar uma legislação positiva para o país.
A Proposta de Emenda à Constituição 438, de 2001, mais conhecida como
PEC do Trabalho Escravo, será apreciada na terça-feira (8) em plenário e
pode, após oito anos na fila, se transformar em realidade. É esta, ao
menos, a expectativa do governo Dilma Rousseff, que se vê na obrigação
de negociar com uma bancada que ostenta um domínio sem paralelos no
Legislativo. Donos de um em cada quatro assentos na Câmara, os
representantes do agronegócio são 0,02% da população – mais que o número
de “escravos modernos” resgatados em 16 anos.
Apresentada em 2001 pelo senador Ademir Andrade (PSB-PA), a PEC do
Trabalho Escravo foi votada no Senado naquele mesmo ano. Em 2004, após a
chacina de fiscais do trabalho em Unaí,
Minas Gerais, a Câmara apreciou a matéria em primeiro turno. Falta,
agora, a votação final para selar a sorte da escravidão contemporânea no
Brasil. “Trata-se do mais poderoso instrumento legal para o combate à
escravidão da história do Brasil”, afirmou na última semana
a Relatora Especial da ONU sobre Escravidão, a advogada armênia Gulnara
Shahinian. “Sua adoção permitirá que pessoas de todos os cantos do país
reconquistem sua dignidade, recebam proteção e liberdade deste
vergonhoso ato que é a escravidão.”
Para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), pioneira no combate ao
trabalho escravo contemporâneo, uma proposta nutrida de valor simbólico:
pune o equívoco e converte o objeto do crime em um instrumento para que
o trabalhador, com terra nas mãos para produzir, não torne a ser alvo
fácil dos aliciadores. Esta, aliás, uma das grandes pendências no
combate ao problema.
Como mostram as reportagens, o país avançou nas duas últimas décadas
na fiscalização do crime. Mais de 40 mil trabalhadores resgatados
depois, como se explica que não se esgote nunca o contingente de
população vulnerável a um crime cometido de semelhante para semelhante? O
2º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, editado em
2008 pelo governo Lula, oferece as respostas: sobra impunidade e falta
reforma agrária.
Em 2011, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) assentou 22 mil famílias sem-terra, número mais baixo desde o
início da série história, em 1995. O Atlas do Trabalho Escravo,
publicado em abril pela organização Amigos da Terra, mostrou pela
primeira vez o mapa da vulnerabilidade: um enorme cinturão que inclui
estados das regiões Norte e Nordeste concentra a maior parte das
vítimas. São homens, analfabetos, quase sempre levados para a chamada
“fronteira móvel” da Amazônia, ou seja, os lugares nos quais os
desmatadores chegam antes do Estado.
Aprovada a PEC, restarão desafios. O primeiro é a própria
implementação da proposta. A legislação brasileira tem até hoje dois
instrumentos para a expropriação por conta do descumprimento da chamada
“função social da terra”. O primeiro, o índice de produtividade, é foco
de frequentes contestações judiciais. O segundo, a destinação para
reforma agrária da terra na qual seja flagrado o uso de psicotrópicos,
como maconha, raramente é utilizado.
Esbarra-se em um Judiciário receptivo ao conceito de uma terra
“sagrada”, acima dos direitos humanos básicos e universais, quase sempre
disposto a entender a escravidão como uma infração trabalhista
qualquer, desprovida de gravidade. O ministro Gilmar Mendes, do Supremo
Tribunal Federal (STF), um proprietário de fazendas, deu recentemente
uma aula de relativização do crime. Ao julgar a transformação em réu do
senador João Ribeiro (PR-TO), Mendes ponderou que a ausência de
refeitórios, de rede de saneamento e mesmo de água para consumo de mil
trabalhadores era fruto das próprias condições de vida do povo
brasileiro, não se podendo, portanto, criminalizar a pobreza.
Nada que surpreenda. Tampouco há de surpreender o argumento que será
utilizado pela bancada ruralista durante a votação de terça-feira. Entre
outras coisas, será apresentada a leitura de que o conceito de
escravidão moderna não está claro, o que abre espaço para o abuso de
poder dos fiscais do trabalho. Mais vale observar o Código Penal,
alterado em 2003. O Estado brasileiro reconhece como crime “reduzir
alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos
forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.”
Como se vê, espaço para dúvida, não há. Na terça-feira o Brasil pode
começar a limpar mais um capítulo sujo de sua história. Ou empurrar com a
barriga.
Leia especial sobre a PEC 438:
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- Trabalho escravo contemporâneo: modelo econômico ou cultura arcaica?
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