Do VioMundo
por Conceição Lemes
por Conceição Lemes
A região de Sorocaba, interior paulista, tem a maior concentração de
leitos psiquiátricos SUS do Brasil. Somam 2.792, distribuídos em sete
manicômios de grande porte.
Quatro situam-se no próprio município de Sorocaba: Vera Cruz, 512
leitos; Mental, 363; Teixeira Lima, 254; e Jardim das Acácias, 240.
Na estrada que liga Sorocaba a Salto de Pirapora (cidade a 15
quilômetros), estão dois: Santa Cruz, 503 leitos, e Clínica Salto, 455.
Há ainda o Vale das Hortências (465 leitos), em Piedade, município a
30 quilômetros de Sorocaba. Com exceção do Jardim das Acácias,
gerenciado por entidade beneficente sem fins lucrativos, os demais são
empresas privadas.
Pois pesquisa realizada nesses sete hospitais psiquiátricos por
Marcos Roberto Vieira Garcia, doutor em Psicologia Social e professor do
campus de Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
abriu uma verdadeira caixa de Pandora, que revelou a precariedade e
desumanidade desses serviços:
* De janeiro de 2004 a julho de 2011, os sete manicômios tiveram 825
mortes de pacientes SUS. Dá um óbito a cada três dias nos últimos oito
anos.
* Apresentaram mortalidade 100% a 119% maior do que a registrada em
outros 19 manicômios do estado de São Paulo. Dos sete investigados, o
Jardim das Acácias foi onde ocorreram menos óbitos; seus índices, porém,
são um pouco piores do que a média do estado.
* Os pacientes falecidos tinham 53 anos, em média; no restante do estado de São Paulo, 62.
* Houve aumento significativo de mortes nos meses frios, fato que não se repetiu nos manicômios do restante do estado.
* A concentração de óbitos por doenças infecto-contagiosas (em
especial, as respiratórias) e por motivos não esclarecidos é
significativamente maior que nos outros grandes manicômios do estado de
São Paulo no mesmo período.
Tão grave quanto essas descobertas foi a “resposta” dos seis
manicômios privados da região de Sorocaba: na segunda quinzena de
novembro, eles abriram processo contra Marcos Garcia e Lúcio Costa. O
Jardim das Acácias é o único dos hospitais denunciados que não moveu
ação.
O professor Marcos Garcia coordena o grupo de pesquisa “Saúde Mental e Cidadania”, certificado pelo Conselho.
Lúcio Costa é psicólogo e integra o Fórum da Luta Antimanicomial de
Sorocaba. O Flamas, como é conhecido, reúne professores de diferentes
universidades e profissionais de diversas especialidades que atuam em
serviços de saúde, assistência social e jurídica do município de
Sorocaba.
Alegações dos hospitais para processá-los: divulgação de “afirmações
falsas”, dados “inexatos”, “equivocados”, “trabalho eivado de
inconsistências e erros”.
“Os hospitais psiquiátricos de Sorocaba (Vera Cruz e Mental, Teixeira
Lima) e região (Piedade [Vale das Hortências] e Salto de Pirapora
[Clínica Salto de Pirapora e Santa Cruz]) pedem na Justiça indenização
por danos patrimoniais e morais em razão dos danos que suportaram
decorrentes da atuação do movimento antimanicomial em Sorocaba”, afirma
ao Viomundo o advogado Rodrigo Gomes Monteiro. “De
forma irresponsável (e mentirosa), passaram a propalar que os hospitais
psiquiátricos desrespeitavam os direitos humanos de seus pacientes e
neles existia um alto número de mortes.”
“Essa ação na Justiça é fora de qualquer propósito, um disparate
completo”, rechaça o professor Marcos Garcia. “Todos os dados da
pesquisa são do DATASUS, portanto oficiais. Qualquer pessoa que saiba
usar o software adequado, pode conferi-los. A reação dos hospitais
denunciados abre um precedente perigoso. Afinal, é uma tentativa
flagrante de cercear a liberdade de pesquisa no Brasil.”
Para se defender e processar Garcia e Costa, os seis manicômios
baseiam-se, entre outros documentos, no parecer do promotor público
Jorge Alberto de Oliveira Marum, que atua em Sorocaba. Ele determinou o
arquivamento do inquérito para investigar as denúncias por considerar
que tinham conotações políticas, partidárias e eleitorais:
“Os dados estatísticos apresentados no
texto elaborado pelo Flamas foram claramente manipulados para
impressionar a opinião pública e agentes do poder público contrariamente
aos hospitais psiquiátricos”.
O Conselho Superior do Ministério Público Estadual de São Paulo, no
entanto, discorda. Em reunião realizada no dia 29 de novembro, rejeitou —
por unanimidade — o arquivamento, defendido pelo colega Jorge Marum.
O conselheiro relator foi o doutor Clilton Guimarães dos Santos. O
conselheiro-secretário, doutor Antonio Carlos da Ponte, assina a
deliberação.
“NUNCA IMAGINEI QUE A SITUAÇÃO FOSSE TÃO RUIM”
Atualmente, Sorocaba, que tem população de 593.775
habitantes, é a segunda cidade brasileira em número de leitos
psiquiátricos SUS. A vizinha Salto de Pirapora, com 40 mil habitantes, a
quinta. Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, com populações muito
maiores, ocupam, respectivamente, a primeira, a terceira e a quarta
posição nesse ranking nacional
“Quase todos os manicômios da região de Sorocaba surgiram na época da
ditadura militar, quando a política de saúde era expandi-los”, observa
Marcos Garcia. “A partir de 2001, com a aprovação da reforma
psiquiátrica no Brasil, os hospitais psiquiátricos foram sendo
desmontados no país. Na região de Sorocaba, não.”
Apesar de esses hospitais não terem levado adiante a reforma
psiquiátrica, não se tinha até o estudo de Marcos Garcia uma avaliação
da situação desses serviços. Talvez por seus pacientes serem pobres,
“invisíveis”, sem voz, frequentemente abandonados por familiares.
Foi então que, em meados de 2010, integrantes do Flamas procuraram
Marcos para que ele fizesse um levantamento dos indicadores da situação
dos hospitais psiquiátricos na região de Sorocaba.
“Aceitei pelo fato de a região ter a maior concentração de leitos
psiquiátricos do país, o que por si só já justificava a importância do
tema”, revela. “Pesquisar, in loco, nos hospitais seria
impossível, os proprietários não permitiriam. Daí surgiu a ideia de se
analisar os óbitos desses hospitais registrados no DATASUS, para ver se
nos davam alguma pista.”
A pesquisa, idealizada em meados de 2010, é parte das suas atividades
como docente do campus de Sorocaba da UFSCar. Ela seguiu a lógica comum
da produção acadêmica regular: pesquisa exploratória, identificação do
problema, elaboração do projeto, coleta de dados, apresentação de
resultados preliminares em Congressos e similares, finalização da
pesquisa, publicação e disseminação dos resultados.
“Eu não tinha nenhuma hipótese a priori”, frisa o pesquisador. “Mas à
medida que a realidade foi se revelando, foi um susto. Eu nunca
imaginei que a situação nos hospitais psiquiátricos da região de
Sorocaba fosse tão ruim.”
Possíveis causas para essa realidade terrível: baixo número de
funcionários (bem inferior ao exigido pela legislação) e demora para
encaminhar pacientes com problemas físicos de saúde a um hospital geral,
entre outras.
AUDITORIAS CONFIRMAM OS RESULTADOS DA PESQUISA
Logo após a divulgação dos resultados preliminares do estudo, os
donos dos hospitais passaram, é claro, a desqualificá-lo e a atacar o
autor.
Porém, devido à reconhecida seriedade e competência do pesquisador, o
estudo recebeu, de cara, apoio de duas importantes sociedades
científicas: Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso).
Além disso, várias instituições e órgãos independentes fizeram fiscalizações in loco
nos hospitais denunciados, confirmando muitos dos problemas levantados
por Marcos Garcia. O relatório completo pode ser lido no site http://liberdadedepesquisa.blogspot.com
No Hospital Psiquiátrico Vera Cruz, por exemplo, a inspeção foi
realizada pelo Grupo Multidisciplinar de Peritos Independentes para a
Prevenção da Tortura e Violência Institucional da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República, que, entre outras coisas, revela:
A causa mortis, na verdade, foi
indeterminada em quase metade dos casos. Dentre os casos de óbito não
esclarecido, 23,52% das mortes ocorreram em pacientes jovens, com idade
inferior a 40 anos.
Existe também uma quantidade
relativamente elevada de óbitos por “infarto do miocárdio” (18,33 % dos
óbitos), sendo que entre os mortos por esta causa 36,33 % correspondem a
pacientes jovens, com idade inferior a 40 anos, uma taxa que é
considerada elevada para pacientes nesta faixa-etária.
Entre as mortes por doenças infecciosas
respiratórias, 16 (80% dos casos) ocorreram entre os meses de maio a
agosto, os mais frios do ano. A incidência relativamente elevada de
óbitos por complicações respiratórias nessa época pode guardar relação
com o precário isolamento contra frio, vento e umidade proporcionado
pelas janelas quebradas.
O Departamento Nacional de Auditoria do SUS também fez auditoria no
Vera Cruz e constatou várias estranhezas no registro de óbitos ali
ocorridos, entre elas:
Os registros anotados no prontuário não permitem, na maioria das vezes, concluir pela causa declarada de morte.
As declarações de óbito de pacientes do Hospital Psiquiátrico Vera Cruz têm pouca variação nas causas de óbito.
Há uma concentração de óbitos por
infecção pulmonar em julho de 2008, quando faleceram 10 pacientes com
pneumonia (47,6%) do total de 21 casos identificados entre os anos de
2006 a 2010 no Hospital Psiquiátrico Vera Cruz.
A inspeção no Hospital Psiquiátrico Mental foi feita por
representantes de vários órgãos e entidades, entre os quais a própria
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Defensoria
Pública do Estado de São Paulo, da Comissão Nacional de Direitos Humanos
do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e do Conselho Regional de
Psicologia de 6ª Região (CRP-SP). Ela recomenda o fechamento desse
manicômio devido à constatação de várias situações de violação de
direitos humanos.
Já a inspeção realizada pela Unidade de Auditoria e Controle da
Secretaria de Saúde de Sorocaba nos sete hospitais psiquiátricos da
região concluiu para todos que houve:
… demora no encaminhamento ou retorno ao
hospital geral de referência e falta de acolhimento para internação em
hospital geral [ para os pacientes com problemas físicos de saúde].
PROMOTOR DE SOROCABA SE ESCUDA EM FERREIRA GULLAR E REINALDO AZEVEDO
Não à toa o Conselho Superior do Ministério Público Estadual de São
Paulo (MP-SP) rejeitou o arquivamento do inquérito, decidido pelo
promotor público de Sorocaba.
No relatório (veja o trecho abaixo), o doutor Clilton Guimarães dos Santos observa que para o colega Marum:
1) não há nada errado com esses hospitais;
2) não se pode atribuir as mortes e outras ocorrências neles à gestão dos manicônios;
3) não é problemático o fato de os seus gestores serem muitas vezes curadores de pessoas custodiadas para tratamento.
Atenta ainda para o fato de o promotor Marum se escudar em textos de
dois não especialistas na matéria: o poeta Ferreira Gullar e o
jornalista Reinaldo Azevedo, da revista Veja.
O conselheiro Clilton Santis salienta também a falta de isenção do
colega para analisar uma questão técnica, julgando-a segundo sua visão
pessoal:
Daí a conclusão do conselheiro-relator, que foi aprovada por
unanimidade pela plenária do Conselho Superior do Ministério Público
Estadual de São Paulo:
PESQUISADORES E ENTIDADES DE SAÚDE REAGEM
O professor Marcos Garcia e o psicólogo Lúcio Costa ainda não foram
notificados oficialmente sobre a abertura do processo. Porém, o Diário Oficial do Estado de São Paulo já publicou a informação.
“Esse processo implica conseqüências perigosas para a pesquisa
científica, tanto local, quanto nacionalmente”, adverte Marcos Garcia.
“A possibilidade de as empresas privadas, como os seis manicômios,
moverem ação contra pesquisadores pode impossibilitar qualquer pesquisa
cujos resultados contradigam os seus interesses financeiros.”
Em resposta a esse cerceamento da liberdade de pesquisa, pesquisadores e entidades lançaram o Manifesto em Defesa da Liberdade de Pesquisa no Brasil:
Vimos por meio desta manifestar nossa
preocupação em relação ao processo movido pelos hospitais psiquiátricos
privados da região de Sorocaba contra o Prof. Dr. Marcos R V Garcia,
da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) pela divulgação de
pesquisa que investigou os óbitos ocorridos nestes hospitais.
Trata-se de um precedente perigoso de
tentativa de cerceamento à liberdade de pesquisa em nosso país, pois
pode levar à abertura de processos semelhantes contra pesquisadores
cujos resultados de pesquisas contradigam interesses financeiros de
empresas.
O manifesto pode ser assinado tanto por professores e pesquisadores
quanto por cidadãs e cidadãos solidários à causa. Pode ser vista este
e-mail: liberdadepesquisa@gmail.com Ou por meio de comentário AQUI.
O manifesto já conta mais de 600 apoios, entre associações
científicas, grupos de pesquisa,entidades de
psicologia (como o Conselho
Regional de Psicologia de Sâo Paulo), professores e pesquisadores de 25
estados brasileiros e de outros países, além de personalidades públicas
e de pessoas solidárias à causa.
O documento, que será encaminhado ao CNPq, já foi entregue à
presidenta Dilma Rousseff, durante o prêmio de Direitos Humanos da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência daRepública. O Flamas, de
Sorocaba, foi um dos ganhadores de 2011.
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