Da Carta Capital
Matheus Pichonelli
Civilização e barbárie
A era dos homo facers
Durante algum tempo, homens e animais dividiram os mesmo espaços e as
mesmas angústias. Não existiam gôndulas de supermercado, mas, em
compensação, não havia outras preocupações na vida a não ser “o que vou
comer no almoço”, “o que devo caçar”, “como conseguir o alimento com
menos tempo e menos esforço”.
Era o tempo da racionalidade. O corpo tinha fome e o instinto nos
levava à caça, à pesca, à colheita de frutos. Homens e iguanas poderiam
sentar numa mesma mesa de bar, se houvesse bar naquele tempo, para
compartilhar as mesmas queixas sobre um dia árduo. “Rapaz, deixei aquele
mosquito escapar, mas foi por pouco. Tive que me contentar com um caqui
podre que já estava no cão. Meu filho ficou puto porque não aguenta
mais comer caqui”.
Ambos eram caça, ambos eram caçadores (a onça corria mais, mas os dois podiam se esconder na árvore).
E assim não caminhava a humanidade até o dia em que o sujeito de
barba, ereto, observou um osso jogado no chão e percebeu que podia fazer
daquele instrumento uma arma. Foi quando resolveu domesticar os animais
para a sua alimentação e companhia. De um lado, atendia aos apelos do
estômago, que teimava em sentir fome; de outro, atendia ao apelo da
alma, para que desse um jeito na solidão.
Deste último grupo não havia melhor representante que os cães, que
eram mais leais que o vizinho barbudo da casa ao lado. Eram tão dóceis
quanto os elefantes e menos pegajosos do que as iguanas; só eles tinham
porte para cuidar do nosso quintal e vigiar nossas posses sem estragos
além dos inevitáveis. Criou-se o conceito de amizade.
Passa a fita e o sujeito barbudo abandona o osso e passa a fabricar
armas. Fabrica também casas, indústrias, estradas, dutos, aviões e até
lâminas de barbear. Fabrica também noções de justiça e regras de
convivência. Quando viu, o homem já não era o lobo do homem, mas um ser
atento a um novo jogo de sobrevivência. Permanecia falso como um
camaleão, mas ciente de que um passo errado o colocaria em problemas com
o delegado, com o juiz e até mesmo com o advogado, que viu naquilo tudo
um negócio mais rentável do que vender ossos a prestação.
Era o tempo da evolução. Enquanto isso as iguanas e os cães seguiam lá: leais, mas à espera de que alguém os alimentasse.
Fato é que, tanto tempo depois, o ser humano já aprendeu a lidar com
quase tudo. Já foi pra Lua, começou e encerrou muitas guerras, construiu
a ponte estaiada sobre a marginal, botou muito vírus e muita bactéria
para correr. Só não aprendeu a lidar com o elemento humano que
definitivamente o diferencia do animal que domestica. Porque o animal,
quando tem fome, come; quando tem sono, dorme; mas o ser humano, desde
que o mundo é mundo, tem mania de complicar tudo. Por isso, toma
remédios para emagrecer quando deve comer, e bebe energético ou café com
guaraná quando precisa dormir.
É o ser humano que, movido a paixões, mata pai, mãe, tio ou irmão
quando é contrariado. Só ele possui propriedades ainda inexistentes no
mundo mineral e animal, como o ciúme, a ingratidão, a raiva, a vingança,
a indignação. Por isso gasta-se tanto tempo para entender, em vão,
atitudes impensadas (ou pensadas, mas fora do script do que se considera
normal), como jogar a filha pela janela do apartamento ou invadir um
haras para matar a tiros a amante.
Anos de evolução, e revoluções (da industrial à tecnológica) e
páginas impressas de vã filosofia não bastaram para eliminar as
barbáries do período primitivo. As barbáries, como os animais, foram
apenas domesticadas. Estão sob eterna vigilância de um conjunto de
regras e noções sobre ação e reação – que impedem, ou deveriam impedir,
que irmãos matem irmãos impunemente. Mesmo assim, não impedem.
E quando não impedem, quando voltamos a nos comportar como animais,
tentamos entender e racionalizar o que aconteceu. Quando isso é
impossível, a coisa trava. Como uma máquina. Não conseguimos emitir
resposta, a cabeça começa a esquentar, a soltar fumaça, como um
computador à espera do Control + Alt + Del para começar tudo de novo.
Mergulhados numa era de competição feroz, e cansados de apertar os
parafusos que nos garantem o orgulho de ser alguém na vida, entramos de
cabeça num período confuso, de pura contradição. Lemos livros de
auto-ajuda e falamos de bons sentimentos, mas damos cotoveladas
homéricas em quem se aproximar do nosso parafuso e nossos quintais. O
outro, o vizinho, o colega e até a esposa e o marido são sempre uma
ameaça. Sempre podem produzir algo que não consta do script, da
trairagem à traição. Porque são humanos, e não devolvem sorrisos quando
fazemos cafuné neles. Alguns te engolem no dia seguinte, e ainda ameaçam
colocar no YouTube aquele vídeo em que você aparece em posição
constrangedora.
Vai ver é por isso que, para compensar nossa incapacidade de se
desanimalizar (tenho a impressão de que essa palavra não existe),
façamos tanto esforço para humanizar aqueles que ainda têm jeito na
vida. No caso, os animais – aquele parceiro de caça de outrora e que
hoje nos distrai e nos faz companhia na hora da novela, da sopa, e na
hora em que precisamos quebrar o gelo da casa para não lembrar que somos
sozinhos, vazios e incapazes de nos relacionar com alguém da nossa
espécie.
É compreensível. Um animal bem cuidado jamais vai ser traiçoeiro.
Vai, enquanto for vivo, cumprir tudo o que se espera dele. Jamais vai te
contestar nem esperar seu sono para ligar para outros donos. Vai ser
sempre leal, parceiro, dócil. Um ser, enfim, que devolve amor quando a
ele dedicamos amor. Bem diferente dos filhos, para passam metade da vida
ouvindo regras e a outra metade as descumprindo. Adão e Eva estão aí
para mostrar que não existe paraíso que compense a delícia de ser
oposição (com o perdão a Machado de Assis).
Com quase 30 anos nas costas, não me lembro até hoje de ter conhecido
ser humano mais leal do que o Tupi, um pastor belga parceiro de dias e
noites num dos períodos mais saudosos da minha infância. E não me lembro
até hoje de ter sentido uma tristeza mais aguda do que o dia em que nos
despedimos dele, num centro veterinário de Jaboticabal, onde meus pais
foram informados de que não havia outra cura para seus tumores a não ser
sacrificá-lo. Nunca me esqueci do Tupi, que uma hora dessas deve estar
roçando as pernas de São Francisco de Assis.
Mesmo assim, acho que até ele se preocuparia se visse, do céu, a
reação de bípedes conectados que, numa ação conjunta articulada pela
internet, resolveram pedir o linchamento público de uma mulher filmada
agredindo um cão até a morte. A cena é lamentável e a comoção, como
diante de qualquer crime, parece inevitável.
O crime é, como qualquer crime, um ponto fora da curva das regras de
convivência. Racionais que somos, não estamos preparados para absorver
algo que não faça sentido (um ser humano maltratar até a morte um ser
indefeso). E, como uma máquina de computador que não codifica a mensagem
e passa a soltar fumaça, voltamos à pré-história. O tal Control + Alt +
Del.
Em coro, juntamente até com o novelista da tevê, vamos às redes
sociais com tridentes, escopetas, facas nos dentes para pedir justiça.
Não a justiça resultante de anos de evolução, com processo, direito de
defesa, ressocialização, espaço para o arrependimento, ação corretiva.
Mas a justiça dos antepassados, que expurgavam os pontos fora da curva
com apedrejamento e sangue.
Na era virtual, não basta cobrar justiça. É preciso expor a
agressora, mostrar a cara, o número do celular, o endereço e o aviso:
procura-se viva ou morta. Se amanhã ela for presa, processada e punida,
não sentiremos a menor saciedade. Sangue se paga com sangue, e é assim
desde que homens e animais engatinhavam juntos nos tempos áureos.
Nada mais representativo dos nossa era atual. Nos últimos anos, o
Twitter e o Facebook permitiram que encontrássemos eco para nossas
ideias mais pessoais, algumas inconfessáveis em períodos normais da
história.
Fosse vivo, Benito Mussolini mediria sua popularidade pelo botão de
“curtir”, e não seria pouca. O usuário da internet, sabendo que é uma
legião, perdeu até a vergonha de relinchar em público. Ganhou uma
plateia para as causas justas (como a defesa da dignidade dos animais) e
para as suas causas duvidosas (como uma certa vontade, assumida ou não,
de passar o trator na cracolândia). O meio é a mensagem e a mensagem é,
no mínimo, estranha: por que vemos tanto espírito no pet e nenhum no
marginal?
A verdade é que, juntos, o sentimento de revolta e o compartilhamento
de simpatias pela barbárie deram outra dimensão à ideia de justiça. Em
defesa dos animais, passamos a pedir a eliminação do ser humano, numa
tentativa vã de extirpar do nosso convívio o elemento humano, aquele
imprevisível, ingrato, incompreensível, que nos leva ao crime e à
barbárie.
A indignação e a revolta nos ajudam a lembrar que somos humanos, e
não máquinas indiferentes. Mas, como humanos, nos lembram que estamos
sujeitos à mesma barbárie, seja como vítimas, seja como carrascos.
Contra a covardia, respondemos com mais covardia. E assim a humanidade
segue, no seu inevitável caminho de volta ao tempo em que ainda
rastejava.
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