Da Carta Capital
Vladimir Safatle
Um dos pontos mais aberrantes da comissão é a indicação de que seus
integrantes devam ser pessoas “isentas”. Uma piada de mau gosto. Há de
se perguntar quem seria suficientemente amoral para ser isento diante de
crimes contra a humanidade e atos bárbaros de violência estatal contra
setores descontentes da população. Quem pode ser isento diante da
informação de que integrantes do Exército, no combate à Guerrilha do
Araguaia, jogavam camponeses de helicópteros e estupravam mulheres da
região? Há algo de profundamente intolerável em pedidos de “isenção”
nesse contexto.
Vladimir Safatle
Este será um ano lembrado, entre outras coisas, como aquele no qual o
Brasil se viu assombrado por seu passado. Durante décadas, o País tudo
fez para nada fazer no que se refere ao acerto de contas com os crimes
contra a humanidade perpetrados pela ditadura. Isso o transformou em um
pária do direito internacional, objeto de processos em cortes penais no
exterior. Contrariamente a países como Argentina, Uruguai e Chile, o
Brasil conseguiu a façanha de não julgar torturador algum, de continuar a
ter desaparecidos políticos e de proteger aqueles que se serviram do
aparato de Estado para sequestrar, estuprar, ocultar cadáveres e
assassinar.
Nesse sentido, não é estranho que convivamos até hoje com um aparato
policial que tortura mais do que se torturava na própria época da
ditadura. Aparato completamente minado por milícias, grupos de extorsão e
extermínio, assim como pela violência gratuita contra setores
desfavorecidos da população. A brutalidade securitária continua a nos
assombrar. Este é apenas um dos preços pagos por uma sociedade incapaz
de dissociar-se dos crimes de seu passado recente.
Outro preço é o tema que mais assombra certos setores da classe média
brasileira, a saber, a corrupção. Esquece-se muito facilmente como a
ditadura foi um dos períodos de maior corrupção do Brasil. Basta
lembrar-se de casos como Capemi, Coroa-Brastel, Lutfalla, Baum-garten,
Tucuruí, Banco Econômico, Transamazônica, Ponte Rio-Niterói, entre
tantos outros. Eles demonstram a consolidação de um modus operandi na
relação entre Estado e empresariado nacional que herdamos da ditadura.
Talvez não seja por acaso que boa parte dos casos de corrupção que
assolam o País tenha participação de empresas que praticam negócios
escusos desde a ditadura. Empresas que tiveram participação ativa, por
exemplo, no financiamento da Operação Bandeirantes.
Corrupção e violência policial são apenas dois aspectos do que restou
da ditadura. Poderíamos lembrar ainda do caráter imperfeito da
democracia brasileira. Temos leis herdadas de períodos totalitários que
se esconderam em nosso ordenamento jurídico. Ou seja, esperamos por uma
reforma jurídica que racionalize nosso direito a partir de princípios
gerais de liberdade social. Seria bom lembrar como temos uma lei
constitucional que legaliza golpes militares. Basta lermos com calma o
Artigo 142, no qual as Forças Armadas são descritas como “garantidoras
dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei
e da ordem”. Ou seja, basta, digamos, o presidente do Senado pedir a
intervenção militar em garantia da lei (mas qual? sob qual
interpretação?) e da ordem (social? moral? jurídica?) para que um golpe
militar esteja legalizado constitucionalmente.
Diante desse cenário de desagregação normativa da vida social por
causa da incapacidade da sociedade brasileira de elaborar seu passado,
poderia esperar-se que a instalação de uma Comissão da Verdade servisse
para iniciar um real processo de reconciliação nacional. Temos, porém,
sólidas razões para -duvidarmos disso.
Um dos exemplos pedagógicos de tal isenção pode ser encontrado no
próprio dia de anúncio da criação da Comissão da Verdade. Diante da
pressão dos militares, Vera Paiva, filha do deputado desaparecido Rubem
Paiva, não pôde ler seu discurso, deixando os parentes de desaparecidos
sem voz. Não poderia haver gesto mais simbólico e prenhe de significado.
Não haverá voz para enunciar demandas de Justiça que não são apenas de
familiares, mas de toda a sociedade brasileira.
Em crimes como os cometidos pela ditadura, não estamos a lidar com o
sofrimento individual. Este é um erro cometido inclusive por setores de
esquerda que querem “resolver tudo isso o mais rápido possível”. Eles
compraram a ideia de que se trata apenas de encontrar reparação adequada
para o sofrimento individual, seja por meio de compensações
financeiras, seja por meio de anulação de atos que portaram prejuízo a
um grupo reduzido de pessoas. Estamos, no entanto, lidando neste caso
com um sofrimento social. Ou seja, toda a sociedade sofreu e ainda sofre
por meio do “corpo torturável” desses indivíduos. Ela sabe que a
violência estatal ainda paira como uma espada de Dâmocles por sobre
nossas cabeças. Ela pode explodir de maneira a mais irracional, como um
conteúdo recalcado que retorna lá de onde menos esperamos.
Por outro lado, é claro que tais demandas de “isenção” escondem o
pior dos raciocínios, a saber, a defesa de que a violência de um Estado
ilegal contra a população equivale à violência de setores da população
contra o aparato repressivo do Estado. “Temos de julgar também os
terroristas”, é o que dizem.
Aqui talvez seja o caso de se perguntar: Para que serve a verdade?
Alguns acreditam que a verdade serve principalmente para reconciliar. Ou
seja, sua enunciação forneceria o quadro de um reconhecimento dos danos
ocasionados no passado. Tal reconhecimento, por mais simbólico que
seja, teria a força de produzir conciliações e versões unificadas da
história nacional.
Não creio que isso possa ocorrer. Sempre teremos leituras divergentes
e irreconciliáveis do que foi a ditadura. Sempre haverá os que dirão
que os militares nos salvaram da transformação do Brasil em uma ditadura
comunista. Por isso, talvez seja o caso de dizer que a enunciação da
verdade não serve para conciliar. Ela serve para romper. Ela rompe com o
medonho exercício de desresponsabilização que foi colocado em marcha no
Brasil. Rompe com a tentativa de colocar no mesmo patamar quem usurpa o
poder e cria um Estado de medo e aqueles que se voltam contra tal
situação. Desde o Evangelho sabemos isso: a verdade não tem o poder de
unir. Ela tem a força de cortar.
É importante dizer isso porque corremos o risco de ver a Comissão da
Verdade se transformar em uma macabra validação da famosa “teoria dos
dois demônios”. Certamente haverá a tendência em colocar em circulação a
necessidade de investigar os “crimes feitos pelos terroristas de
esquerda”. Por isso creio ser mais que necessário perder o medo de dizer
em alto e bom som: toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal.
Um Estado ilegal não pode julgar ações contra si por ser ele próprio
algo mais próximo de uma associação criminosa. Esta era a situação
brasileira.
Pois podemos dizer que dois princípios maiores fundam a experiência
de modernização política que caracteriza a tradição da qual fazemos
parte. O primeiro desses princípios afirma que um governo só é legítimo
quando se funda sobre a vontade soberana de um povo- -livre. O segundo
princípio afirma o direito à resistência. Mesmo a tradição política
liberal admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão
tem de assassinar o tirano, de lutar de todas as formas contra aquele
que usurpa o poder e impõe um Estado de terror, de censura, de suspensão
das garantias de integridade social. Nessas situações, a democracia
reconhece o direito à violência.
Costuma-se dizer que o direito à resistência não pode ser aplicado ao
caso brasileiro já que a repressão caiu exclusivamente sobre os ombros
de integrantes da luta armada que procuravam criar um governo comunista e
totalitário no Brasil. Mas a afirmação é falsa. A repressão agiu contra
toda forma de resistência, não só aquela da luta armada. O deputado
Rubem Paiva, assim como vários sindicalistas e estudantes não faziam
parte da luta armada e foram brutalmente mortos. Diz-se que estávamos em
uma guerra e “efeitos colaterais” são produzidos. Mas, mesmo em
situações de guerra, abusos são punidos.
Por outro lado, contrariamente ao que ocorreu na Argentina, os grupos
de guerrilha apareceram no Brasil a partir do golpe militar, ou seja,
se não houvesse ditadura não haveria grupos de guerrilha, a não ser
focos isolados e completamente irrelevantes. É bom lembrar que boa parte
daqueles que se engajaram na guerrilha tinha apenas uma vaga ideia do
que queria, mas tinha uma ideia muito clara do que não queria. Lembre-se
ainda que o direito à resistência não se anula pelo fato de defender
outro regime de governo. Não por outra razão, líderes comunistas ainda
são vistos como heróis da resistência na Europa.
Por essas razões, a única reconciliação possível ocorrerá quando
aplicarmos no Brasil o que foi feito na África do Sul. O que queremos
não é a cadeia para generais octogenários. Queremos que os responsáveis
pelos crimes da ditadura peçam perdão, em sessão pública, diante dos
familiares e torturados. Se o perdão é o gesto que reconcilia e apaga as
feridas do passado, há de se lembrar que só pode haver perdão onde há
reconhecimento do crime. Que a Comissão da Verdade não sirva para, mais
uma vez, tentarem nos extorquir uma falsa reconciliação
Este será um ano lembrado, entre outras coisas, como aquele no qual o
Brasil se viu assombrado por seu passado. Durante décadas, o País tudo
fez para nada fazer no que se refere ao acerto de contas com os crimes
contra a humanidade perpetrados pela ditadura. Isso o transformou em um
pária do direito internacional, objeto de processos em cortes penais no
exterior. Contrariamente a países como Argentina, Uruguai e Chile, o
Brasil conseguiu a façanha de não julgar torturador algum, de continuar a
ter desaparecidos políticos e de proteger aqueles que se serviram do
aparato de Estado para sequestrar, estuprar, ocultar cadáveres e
assassinar.
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