Uma longa entrevista com um sociólogo norte americano que dentre outras coisas aponta um rearranjo do capitalismo que, segundo ele, ainda é muito forte e só passa por uma mudança cíclica.
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
DE SÃO PAULO
Movimentos que aparecem e desaparecem, fluidos e persistentes.
Fragmentados, gravitam em torno dos excluídos do capitalismo. Assim,
Michael Burawoy, presidente da Associação Internacional de Sociologia,
explica os movimentos sociais que pipocam no mundo e o recente Ocupe
Wall Street.
Para o professor de sociologia na Universidade da Califórnia em
Berkeley, que já trabalhou como operário para fazer suas pesquisas, a
atual crise econômica vai ajudar o capitalismo a se reestruturar. E
prevê que a catástrofe ambiental "vai forçar uma resposta a nível
global".
Nesta entrevista ele compara os movimentos com o Maio de 68, fala do
poder dos EUA e faz uma avaliação da China. "Acho que o Estado chinês é o
mais brilhante do mundo. É incrivelmente sensível e flexível", afirma.
Ele estará no Brasil para a reunião anual da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(Anpocs), que acontece de 24 a 28 de outubro em Caxambu (MG).
Sobre sua profissão, sugere: "Acho que todos os acadêmicos como eu
deveriam compulsoriamente passar um tempo em fábricas ou em situações
similares, onde serão humilhados rotineiramente".
*
Folha - Como descreve o capitalismo hoje?
Michael Burawoy - É a terceira onda de mercadilização. A primeira foi
no século 19 que espalhou o mercado pelo mundo, outra no século 20 e
agora a terceira onda. A mudança começou nos anos 1970. Muitos chamam de
neoliberalismo, mas pode confundir com ideologia. Prefiro chamar de
terceira onda de mercadilização, a partir dos EUA e da Grã-Bretanha.
Vivemos numa era de capitalismo de mercado. A queda da URSS renovou as
energias, porque sugeriu que alternativas ao capitalismo não existem. A
elite pós-soviética que tomou o poder abraçou o mercado com fervor
revolucionário. A China hoje parece abordar o mercado de uma maneira
diferente, embora seja muito comprometida com as economias centrais de
mercados desregulados. O mundo virou pró-mercado e talvez a América
Latina seja o lugar mais interessante de resistência a essa onda.
Mas hoje não há uma crise enorme, de fundo?
Não chamaria de crise de fundo. O significado das crises é que elas
permitem o capitalismo reestruturar a si mesmo. Na crise de 2008 nos
EUA, quando Obama chegou ao poder, muitos pensaram que haveria alguma
mudança contra o mercado. Mas não aconteceu. O capitalismo se
reestruturou e aprofundou a mercadilização. E o capital financeiro se
fortaleceu. Os Estados salvaram os bancos. Dizíamos que era o socialismo
para os ricos. A crise existe, mas não é uma oportunidade para
progressivas transições ou transformações, mas reestruturar o
capitalismo.
E para que direção vai a reestruturação agora?
O capitalismo financeiro ficou ainda mais forte, essencialmente fora
do controle dos Estados individualmente. Acontece nos EUA, na Europa,
com a desregulação. Nos anos 30 era possível para os Estados conter e
redirecionar o capitalismo. Hoje é difícil para os Estados fazerem isso.
É uma pergunta aberta se Estados e regiões poderão fazer isso hoje.
Eles têm dificuldade em conter a crise nesse momento.
O que poderá ser feito?
Os mercados vão continuar do seu jeito. A grande crise do capitalismo
virá quando chegar a catástrofe ambiental. Penso que haverá desastres
cada vez mais frequentes e profundos. Haverá um momento de virada na
história, uma espécie de barbárie ou alguma forma de regulação global
dos mercados. Pode não é um cenário muito positivo. Regulação de
mercados pode ter um caráter fascista ou comunista ou social-democrata.
Não se sabe. A reação contra os mercados pode tomar muitas formas de
regulação. Precisaria ter um caráter global por causa da catástrofe
ambiental de proporção global. Outra questão é se teremos recursos para
de fato conter o capitalismo. Não sei quando isso acontecerá, mas essa
será a crise de fundo do capitalismo: destruir as condições de sua
própria existência, destruindo o ambiente, modificando condições que
nunca deveriam ter sido modificadas.
E o poder das finanças vai diminuir?
Sim, se houver um movimento contra essa terceira onda de
mercadilização, deve haver um movimento contra o capitalismo financeiro.
Também operando de forma global. É difícil para os Estados regularem o
capital financeiro. Precisa ser um movimento global. Pode ser uma
cooperação global de Estados ou movimentos sociais que perpassem
fronteiras nacionais. O movimento contra o capitalismo financeiro de
hoje precisaria ter uma proporção global. Isso é muito difícil, porque
estamos trancados em políticas nacionais. Transcender isso é muito
difícil. Essa herança de Estados forte é uma contenção nacional.
Mas há agora movimentos na Europa, no Norte da África, no Oriente Médio, nos EUA, o Ocupe Wall Street. Eles têm pontos em comum?
Sim. É interessante ver como são similares. Estive em Barcelona e vi
os indignados. Agora também em Wall Street. São muito similares.
Resistem a se engajar no sistema político, em levantar temas políticos.
Isso reflete a ubiquidade dessa forma do capitalismo financeiro
expressa. Política estatal, políticos locais não conseguem lidar com
isso. É reconhecimento de que as novas formas de capitalismo não podem
ser facilmente contidas pelos canais políticos normais. Todos esses
movimentos refletem uma era de exclusão. Se você olha para os
participantes desses movimentos eles são os excluídos, não são muito os
explorados. O centro de gravidade desses movimentos são os excluídos, os
desempregados, estudantes semiempregados, juventude desempregada,
membros precários da classe média até. É um conglomerado de grupos
diferentes todos vivendo um estado de precariedade porque foram
excluídos da possibilidade de ter uma posição estável de exploração.
Hoje a exploração, o dinheiro seguro é um privilégio para poucos. Muitos
querem fazer parte da exploração para ter uma renda estável. Os
políticos de hoje giram em torno de uma aristocracia de explorados. Isso
no mundo todo, com diferenças. Na Espanha há os indignados, muito
organizados nas praças. Organizam assembleia, sua forma de democracia
participativa, nas praças dos centros das principais cidades. Na
Inglaterra houve mais revoltas, o que reflete 30 anos de vazio na
sociedade civil de lá. A direção desses movimentos está muito ligada à
relação com o movimento sindical oficial. Nesta semana uma central
sindical aderiu ao Ocupe Wall Street. O movimento sindical tem um papel
importante no Egito e na Tunísia. Acho que o centro de gravidade dos
trabalhadores está mudando das centrais que representam que representam
os explorados, para os despossuídos.
Qual o futuro dos movimentos se sua organização é muitas vezes confusa?
Na minha opinião esses movimentos não são muito fortes, mas são
persistentes. São oposições radicais. É uma das reações à terceira onda
de mercadilização. Mas há muitas outras. Aqui há o Tea Party, os
republicanos direitistas, que são uma outra forma de reação ao mesmo
fenômeno. Na Europa há um avanço da direita, que é uma outra reação. Na
América Latina há interessantes experiências de participação em
democracias em nível local. Também é uma resposta à terceira onda de
mercadilização. Há a resposta islâmica. Há o estado iraniano de um lado e
o turco de outro. São diferentes, mas respostas ao mesmo fenômeno. Mas
nenhuma dessas respostas tem uma coerência para se espalhar pelo mundo
todo. São respostas fragmentadas. Essas respostas vão continuar, algumas
de forma mais regressiva, ou progressista, ou emancipativa, ou
democrática. Temos que esperar para ver qual delas vai assumir uma força
dominante. No fim, acho que a crise ambiental vai forçar uma resposta a
nível global. Mas por enquanto é muito fragmentada. As centrais
sindicais reclamam que fizeram esse protestos antes, e ninguém deu
atenção para eles. O interessante é que parte desses novos movimentos é a
política simbólica. Eles têm a capacidade de atrair atenção para eles,
usando técnicas inovadoras. Recusam fazer compromissos e concessões.
Estão sendo muito bem sucedidos simbolicamente. A pergunta é se eles
conseguiram transformar essa política simbólica em um movimento mais
profundo. É fascinante. Não é muito forte. São poucos milhares pelo
país. O que é significativo é o caráter simbólico. É uma posição muito
clara que vivemos num período do capitalismo em que o bem estar está
fora de controle e o estado frustra. É um ataque central ao âmago do
capitalismo. O movimento sindical está numa posição mais defensiva, pois
querem defender empregos e não de fato atacar o capitalismo. A
significância não é de números, mas simbólica na crítica ao capitalismo.
E os partidos políticos tradicionais são totalmente por fora disso?
Sim, completamente. Os republicanos acusam os manifestantes de
fomentar o choque de classes. Claro, que estão fomentando choque de
classes contra o capitalismo. Eles dizem isso para tentar deslegitimizar
o movimento imediatamente. Isso pode ser verdade para parte da
população norte-americana.
Mas esse movimento pode ter alguma influência dentro do partido
democrata, assim como o Tea Party tem no partido republicano, para
revitalizar o partido e conquistar algo de efetivo?
Acho que o partido democrata deve ser revitalizado, mas isso não está
na pauta do movimento. É uma política formal com a qual eles não vão se
engajar. Podem estimular mudanças no partido democrático? Eu
pessoalmente duvido. Isso é tão profundamente diferente do partido
democrata. Esse movimento também expressa a desilusão com a
administração Obama.
Mas esse movimento pode ter alguma importância nas eleições do ano que vem?
Suspeito que pode. Pode ser explorado o fato de ser um ano eleitoral e
pode engajar políticos. Podem usar o ano eleitoral para disseminar suas
ideias. Mas não imagino que vão se candidatar. Não é um movimento de
política eleitoral. É distante da política eleitoral. A questão é como
movimentos assim desligados das principais instituições da sociedade
podem sobreviver. Acho que é o seguinte: eles aparecem, se sustentam por
algumas semanas ou meses. Depois perdem a atenção da mídia, perdem o
apoio, desaparecem. E depois reaparecem. É um processo contínuo de
aparecimento e desaparecimento. É como se houvesse um movimento
giratório pelo mundo. Esses movimento aparecem por causa de alguma
fagulha, um incidente qualquer, e se sustentam por algumas semanas,
desaparecem e aparecem em algum outro lugar. Há um senso de
continuidade, mas não num mesmo lugar. É um movimento transespacial
dessa forma. Fundamentado muito por razões locais, mas transespacial.
Tudo isso é muito novo, não?
Sim, mas é preciso ver tudo isso no contexto do capitalismo. É um
movimento muito fluido e flexível. Fui a Wall Street alguns dias atrás.
Dá para ver que é fluído e flexível. Eu estava lá e nem sabia que
haveria uma marcha. Há espontaneidade, flexibilidade. É fascinante.
Aparecer, desaparecer. É parte de sua força e de sua fraqueza.
Nesse contexto, crescem as ideias de esquerda?
Sim, os participantes são de esquerda, são radicais democratas
participativos, que preferem estruturas horizontais a verticais.
Protestam contra o capitalismo que enxergam ao seu redor. Tudo acontece
de forma muito transparente. É uma antítese da terceira onda de
mercadilização. Mas quero enfatizar que não é a única reação a esse
fenômeno do capitalismo. Há reações à direita também, com fundamentos
mais autoritários. Os indignados também são uma forma democrática de
política. Não sei se pretendem usar a palavra socialismo. Democracia é a
palavra. Já os estudantes, como no Chile, também estão protestando
contra essa onda do capitalismo, que essencialmente privatizou as
universidades. Não só isso, mas a produção de conhecimento se tornou um
projeto comercial e isso significa que se você quer educação precisa
pagar por isso. Vi isso recentemente na Ucrânia, onde os estudantes
estão protestando. E o movimento estudantil é claramente contra isso,
contra a comercialização da universidade. Os países podem ter abraçado o
mercado, mas os estudantes reconhecem as enormes limitações e o que o
mercado significa para eles. No período soviético a educação era
gratuita. Ninguém imaginava a privatização da educação. O mundo
pós-soviético era para ser de emancipação. Mas eles verificaram
rapidamente que não houve solução para os problemas que a planificação
soviética criou. É também um problema sociológico. Também o movimento
estudantil é fragmentado, aparecendo e desaparecendo, tentando construir
algo pelo mundo com os temas em comum, mas é muito difícil ainda. É
frágil, mas persistente.
O sr. faz alguma comparação com maio de 68?
Não, é um mundo diferente. Maio de 68 foi o fim da era de Keynes, uma
reação à segunda onda de mercadilização. Era o período de Keynes na
economia, as universidades eram entendidas como instituições públicas, a
economia de mercado era regulada. As lutas tinham um caráter muito
diferente. Hoje as lutas são defensivas do ponto de vista do interesse
material. Uma defesa contra o mercado. Em 68 tiveram um caráter mais
político do que econômico. Nos EUA havia a luta pelos direitos civis,
pelo direito de liberdade de expressão, contra a guerra do Vietnã. Em
Paris, o Maio de 68 foi também uma luta política. Hoje os estudantes
estão enfrentando uma situação econômica impossível. Os estudantes não
estão ganhando a luta pela defesa de seus interesses econômicos, em
defesa da universidade pública, em defensa da educação semigratuita.
O que o sr. acha do papel da China?
Eu vi a transição na Rússia. Do Estado socialista para a economia de
mercado. A estratégia era muito simples: destruir tudo do passado. Tudo
que tinha a ver com coletivização, planificação da economia, destruir,
destruir, destruir. E fizeram isso com o Estado: destruir, destruir.
Achavam que se destruíssem o passado, destruíssem as instituições do
Estado, as regulações do mercado, a economia de mercado iria chegar
espontaneamente ao paraíso. Mas o que ocorreu foi que não chegou ao
paraíso, mas, de fato, ao inferno. A economia russa afundou de uma
maneira nunca vista em tempos de paz no século 20. É um contraste.
Enquanto a Rússia caia, a China estava se expandindo e crescendo nos
anos 1990 e até hoje. Isso porque a China não disse: destruir, destruir.
Disse: vamos construir o mercado com a moldura da regulação de mercado,
na moldura do partido de Estado. Assumiram que os mercados precisam de
instituições para que funcionem de maneira efetiva. Acho que os
terapeutas de choque, das teorias de big-bang no que era a antiga URSS
não entenderam que os mercados não cresceram como mercados. É preciso
ter instituições. Os chineses entenderam isso. A transição deles foi
alimentar, incubar os mercados na moldura do partido de Estado. E eles
foram extremamente bem sucedidos e continuam a sê-lo. O problema deles é
que ser tão bem sucedido também gera todo o tipo de tensões.
Particularmente os diferentes níveis de iniquidade, entre áreas rurais e
urbanas, entre classes, entre ocupações. A questão é se os chineses
podem conter essas tensões e conflitos gerados pelo sucesso do modelo
econômico. Acho que o Estado chinês é o mais brilhante do mundo. É
incrivelmente sensível e flexível. Sabe exatamente onde novos conflitos
vão aparecer e tem uma enorme capacidade de contornar esses conflitos,
ora criando um aparato legal de flexibilização dentro da arena legal,
ora fazendo concessões econômicas. Há uma enorme máquina, uma série de
estratégias para diluir os conflitos. Ninguém sabe até quando isso vai
durar, mas eles têm sido bem sucedidos até agora. Eles estão fazendo uma
mudança lenta das fábricas das áreas da costa para as áreas mais
baratas do interior. Novas cidades são criadas do dia para a noite.
Alguns capitais acham muito caro e vão para o Camboja ou Taiwan. Há uma
reestruturação do capital na China. Há estudos sobre a ida dos
capitalistas chineses para a África. E eles exploraram as riquezas de lá
de modo muito diferente do das empresas capitalistas do Ocidente. Eles
têm um tempo muito maior. Uma das características do capitalismo é o
curto prazo, o lucro imediato. Então, quando o preço do cobre vai para
baixo, saem da Zâmbia. Mas os chineses não vão embora. Eles vão ficar e
olhar para o longo prazo porque eles têm a retaguarda do Estado. Eles
têm uma visão melhor do que precisam para o futuro, o que significa
muitos recursos naturais. Estão tomando conta silenciosamente de várias
partes do mundo, direta ou indiretamente, sem ambições políticas.
O poder dos EUA está caindo?
É difícil de responder, porque é difícil o significado de poder. A
economia não está numa boa forma, mas é uma economia extremamente forte.
Politicamente é muito poderosa. Mas acho que está enfrentando um super
estresse, não sabendo como lidar com os conflitos que emergem no mundo,
mas ainda consegue manter pontos cruciais, o principal deles é Israel.
Manter Israel é sempre uma condição sine qua non na geopolítica. Mas é
difícil responder a pergunta porque o poder é multidimensional.
O sr. acha que Obama será reeleito?
É muito cedo para dizer, mas diria que sim.
O sr. fez um trabalho interessante atuando como operário. O que pode dizer sobre isso e sobre os seus projetos atuais?
Eu não trabalho mais como operário.
Sente falta?
Não. Odiei cada momento. Acho que todos os acadêmicos como eu
deveriam compulsoriamente passar um tempo em fábricas ou em situações
similares, onde serão humilhados rotineiramente. Estou estudando minha
própria fábrica agora que é a universidade. Esse é o meu projeto:
estudar universidades em crise pelo mundo afora. É entender o que
acontece com as universidades, como elas lidam com as pressões do
mercado de um lado e do Estado de outro. A maioria das universidades
está em crise. Há uma comercialização da produção do conhecimento e do
consumo do conhecimento.
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