Enquanto
Lula enfrenta o câncer publicamente, cientistas políticos de fachada
ruminam um mal disfarçado gozo doentio. Foto: Ricardo Stuckert/Instituto
Lula
A se tomar cultura no sentido amplo que lhe dão os antropólogos – o
conjunto de representações simbólicas com as quais se identifica
determinado grupo – o câncer do Lula é o acontecimento cultural do
Brasil em 2011. Nunca antes neste País uma doença teve o condão de
revelar tantos significados emblemáticos e tantas patologias sociais.
Subjacente ao drama pessoal do ex-torneiro mecânico tornado
presidente da República reavivam-se crendices, mitos, a mesma
intolerância, a mesma intransigência que vêm espreitando cada ato da
longa trajetória política de Lula, fazendo borbulhar no caldeirão das
mentalidades, elas, sim, -doentias, um vingativo contentamento – como
se, da mesma forma como ocorre em certos crimes hediondos, a culpa
pudesse ser da vítima.
Foi, aliás, nas vizinhanças do Dia das Bruxas que se divulgou a
novidade – “uma bomba”, reagiu uma delas, ruminando mal disfarçado gozo,
bruxa radiofônica a bordo de sua fachada de “cientista política”.
Indiferente mais uma vez aos efeitos da mandinga e do mau-olhado, Lula
decidiu agir com transparência: convenceu a equipe médica, naquele mesmo
dia 29 de outubro, de que não havia porque sonegar a informação ao País
e instruiu o Hospital Sírio-Libanês a divulgar um boletim relatando a
verdadeira natureza de sua doença, um tumor maligno na laringe.
A partir daí, vive o paciente à mercê de um penoso tratamento e de
uma natural incerteza, enquanto divide-se a nação entre o susto, a
perplexidade, a compaixão, mas também a raiva, o desprezo, o
ressentimento, requentados agora pela reconfortante sensação de que, se o
adversário é invulnerável na política, há de ser frágil na vida.
Atribui-se ao escritor Otto Lara Resende a frase de que o mineiro só é
solidário no câncer. No que diz respeito ao mais admirado líder político
do País em todos os tempos, há patrícios seus que paradoxalmente nem
nesse caso lhe são simpáticos.
Noticiada a doença, assistiu-se de cara a um denso “Momento Sigmund
Freud” por parte daquelas tias de Brasília, muito poderosas, as quais
sempre fizeram do ofício de informar o exercício impenitente do vodu
contra o tosco metalúrgico arvorado em prócer político. Por um minuto,
devem ter saboreado a exultante certeza de que suas novenas fervorosas
não foram em vão. Uma delas chegou a aventar, feliz da vida, a ironia de
Lula, o tribuno, o orador, o incurável falador, ser atacado exatamente
no gogó. Se o ex-presidente é mestre por convencer pela palavra, que
ele, então, em castigo dos céus, pague pela língua (a tia deixou nas
entrelinhas o arfar de -donzela -injuriada).
Propagou-se a partir daí o tremendo festival de subpsicanálise de
auditório, reiterando a crença de que o câncer do Lula, ainda que não
seja um recado dos deuses, é uma punição terrena. “Não é surpresa”,
balbuciou a comentarista Lúcia Hippolito, da CBN (leia-se das
Organizações Globo). “Não é surpresa, tendo em vista o abuso da fala do
presidente que jamais teve um exercício de fonoaudiologia, de nada
disso, e ‘tava no palanque todo santo dia’, tabagismo, alcoolismo…”
Agindo como bedel de colégio interno, a comentarista acrescenta uma
interessante avaliação sobre a qualidade da voz de Lula (roufenha),
deixando claro que, a depender dela, já teria compulsoriamente cassado
aquele desagradável timbre antes mesmo do câncer.
Nem as mais rasteiras manifestações de pensamento mágico por parte
dos pigmeus da Botsuana haveria de se comparar, em mediocridade, ao
debate nacional sobre Lula e seu mal. Correu por aí, no bojo dos
palpites palavrosos, o mito de que o câncer tem causa psicossomática. A
ciência moderna repudia isso como uma rematada besteira. Câncer é uma
transformação maligna na célula que nada tem a ver com o estado de
espírito da vítima. Existe, sim, um fator socioambiental a interferir na
dialética saúde-doença, mas daí a estabelecer uma correlação entre a
pororoca vernacular do Lula e seu tumor maligno já é ir longe demais no
atoleiro pseudocientífico.
Faz lembrar – desculpe a digressão – a teoria que o delirante Wilhelm
Reich erigiu em torno de seu antigo mentor, Sigmund Freud, quando o
mestre da psicanálise caiu vítima de um câncer na garganta. A tese de
Reich era mais ou menos essa: para fazer da psicanálise uma disciplina
socialmente aceita, para retirar dela toda aspereza revolucionária, de
desafio ao status quo, depurando, por exemplo, o que ela trazia de mais
inquietante no quesito sexualidade, Freud teve de negociar, de
acochambrar, de engolir muito sapo. Consequência: câncer entalado na
goela. Esqueceu-se Reich do detalhe banal de Freud ter fumado, a vida
toda, 20 charutos mata-ratos por dia. Inclusive enquanto assistia seus
pacientes no divã.
Repetindo: no caso de Lula, tratam-se de meros subterfúgios em torno
da mesquinha desforra ao estilo “bem feito!”. Uma variação aggiornata de
antiquíssimos rancores contra o operário quando ele se aprumava em
terno e gravata e contra o mandatário que, na condução da sexta maior
economia do mundo por oito anos, ousou comprar um jato à altura do seu
cargo, de sua liderança e do seu País. Torciam, no íntimo, para Lula se
esborrachar no solo com o avião decrépito. Ao se evidenciar a má fé,
passaram a sugerir que o Boeing seria mero capricho pessoal, como se, ao
deixar a Presidência, Lula fosse taxiar o “Aero Lula” na garagem de seu
prédio em São Bernardo.
Os eleitos do privilégio jamais se conformaram ao ver o nordestino sans lettres et sans coulotte invadir o cenáculo dos bien nés.
Pior: magoou a eles o sucesso internacional da criatura. Coube-lhes,
sempre, a reação do deboche. Acionam, agora, de novo, insensíveis a
qualquer arroubo de humanidade, a artilharia do escárnio. Pois o
impenitente ídolo da senzala cometeu o desatino de buscar, na Casa
Grande, os recursos clínicos e tecnológicos para a cura. Internou-se num
hospital de excelência: o Sírio-Libanês, de São Paulo. Paga as contas
com seu dinheiro – e seu seguro de saúde. Como teria direito qualquer
ser humano. Mas tem gente que sequer concede ao Lula o direito de se
sentir um ser humano.
O esgoto foi destampado nas redes sociais. Entre os anônimos que
festejaram abertamente a enfermidade e outros que chegaram a sugerir que
se tratava de uma farsa para induzir à comiseração alheia, trafegou a
incessante pergunta: por que é que Lula não optou por se tratar na vala
comum do Serviço Único de Saúde, o SUS? Por que é que o otimista
porta-voz das recentes conquistas sociais da nação, recorre, quando
necessitado de assistência médica, a um serviço privado de saúde?
O rastilho da cobrança se alastrou: por que Lula não entrou na fila,
como o zé-povinho? Espalhou-se a reclamação, reiteradamente, do pundit
Elio Gaspari à tuiteira Luana Piovani. Os ranzizas light aliviaram: não
que Lula não mereça os melhores cuidados, absolutamente não, mas ele
deveria dar o exemplo. “Não que ele esteja moralmente obrigado a tanto”,
escreveu um fanático do antilulismo. Mas já que ele fala tanto em povo e
elite, “não se lhe está desejando mal nenhum, mas se cobrando
coerência”.
O webfenômeno Lula-no-SUS comporta preconceito – duplo, triplo,
múltiplo – e ignorância. Saúde de qualidade, só para os privilegiados,
defendem os falsos arquitetos da simetria social. O Sapo Barbudo que
pague o preço de ter se candidatado a mudar a situação e de fazer sonhar
os pobres. Não é difícil calcular que 99% das pessoas que queiram
remeter Lula para o sistema público de saúde não tenham a menor noção de
como ele funciona, não façam a menor questão de entendê-lo e, lá no
fundo, estejam olimpicamente se lixando para os pobres diabos que
recorrem a ele. Dane-se o SUS.
Vozes de bom senso trataram de fazer o necessário contraponto. O
ex-presidente FHC viu nas reações anti-Lula o ranço de elitismo. Na
mesma linha alertou, isento de qualquer suspeita de parcialidade, o
deputado Marcus Pestana, do PSDB de Minas Gerais. “Sempre me incomodaram
visões desinformadas e preconceituosas que faziam uma associação
superficial e imediata entre SUS e caos”, escreveu Pestana para o jornal
O Tempo. “Recente pesquisa do Ipea mostrou que a avaliação
positiva dos que utilizam os serviços do SUS é três vezes superior a
daqueles que possuem saúde complementar e, portanto, têm uma visão
externa e municiada por narrativas que distorcem a realidade.”
Lula encara hoje a realidade de um mal agudo – se bem que curável.
Submeteu-se, sorridente, sob os doces cuidados de dona Marisa, ao
sacrifício da barba e dos cabelos. Dá para imaginar o que sentiu ao se
desfazer do adereço facial que lhe constituiu a mística. Muito do vigor
combativo do Lula do passado se exprimia simbolicamente nos fios
revoltos de sua barba. Ao se aproximar do poder, Lula pacificou-os, numa
arquitetura que reiterava o candidato à concórdia e à cordialidade,
como se fosse um político da República Velha. O que era rebeldia passou a
sinalizar sabedoria.
Ao se olhar hoje no espelho, Lula há de estranhar. É difícil
reencontrar-se com uma criatura que, de repente é você e também não é.
Mas a batalha de agora consola o sacrifício.