A eleição de Salvador Allende com maciço apoio popular
despertou a reação das forças conservadoras, apoiadas pelo EUA (Foto:
Fundácion Allende)
São Paulo – Menos badalado que o “rival” do Norte, o 11 de Setembro
chileno não é menos importante. A data, que marca o aniversário do golpe
de Estado perpetrado pelo general Augusto Pinochet em parceria com os
Estados Unidos contra o governo constitucional de Salvador Allende, é
sempre um chamado à reflexão.
O Chile de hoje olha para trás e não se encontra. Onde está aquele
país vendido ao mundo como maravilhoso, um exemplo de coesão social, de
harmonia e paz? Quem terá desaparecido com uma nação cantada em verso e
prosa pela mídia brasileira, o porto seguro para os negócios privados e
para as férias de inverno?
O curioso é que os mais jovens parecem ter a resposta. Os estudantes,
mobilizados há mais de três meses para exigir uma reforma no sistema
educacional chileno, são os autores das mais claras manifestações de que
é hora de fazer desaparecer do cotidiano o entulho deixado por
Pinochet. Foi preciso que um governo conservador viesse à tona para
evidenciar o quanto de “herança maldita” – para nos atermos à expressão
querida pela imprensa pátria – há em curso no país.
Os alunos e seus professores rejeitam qualquer acordo negociado entre
a classe política tradicional e recusam a intermediação de deputados e
senadores. Querem falar por si. O descrédito da vida política
institucional chilena ficou evidente em pesquisa divulgada esta semana.
Impressionantes 68% reprovam o presidente Sebastián Piñera. Apenas 24%
se dizem identificados de alguma maneira com o atual governo.
Seria de se imaginar que, então, a maioria se sinta alinhada à
oposição, mas não é isso que mostram os números. 71% reprovam a
Concertação, bloco de partidos que governou o país durante duas décadas e
que agora comanda, ao menos numericamente, a oposição. Mais que isso,
37% não se identificam nem com um lado, nem com o outro.
“Fatal seria que os insurgentes de hoje depositássemos na
Constituição, nas leis vigentes e na tramitação parlamentar a solução da
crise educacional, a reforma tributária e outras múltiplas demandas
cidadãs”, cravou, em artigo para o jornal El Ciudadano, Juan Pablo
Cárdenas, diretor da Rádio da Universidade Nacional do Chile e antigo
analista da política nacional. Para ele, a batalha pela reforma
educacional é apenas a mãe de muitas outras que resultarão em uma
Assembleia Constituinte e em uma nova Constituição, após a qual
finalmente se poderá falar em democracia, justiça e liberdade.
Filhotes
O atual sistema educacional chileno é filhote da ditadura de
Pinochet. No início da década de 1980, o governo apostou que o caminho
era a abertura ao setor privado, e a ideia da educação como direito
básico foi substituída pela “liberdade de escolha”, nos moldes do livre
mercado proposto pelas teorias neoliberais em voga.
Com isso, as escolas particulares foram abertas aos montes, e
passaram a receber fortes subsídios estatais para concorrer com as
instituições privadas – a crença de que a competição resolveria uma
questão na qual o Estado não deveria se imiscuir diretamente. O
resultado é a contestação que ora se vê, com estudantes exigindo o fim
da concessão de benesses a empresários que enriquecem sem entregar o
produto – no caso, o ensino.
Nas universidades, públicas ou privadas, é preciso pagar matrícula e
mensalidades, o que leva jovens a ingressarem em dívidas que lhes
afetarão boa parte da vida adulta. “O Chile foi um laboratório da
influência da Escola de Chicago. A repressão garantia as condições
políticas para implementar um ajuste liberal extremamente radical no
qual as pessoas não podiam se manifestar”, afirma Luis Fernando Ayerbe,
coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da
Universidade Estadual Paulista (Unesp).
A Escola de Chicago, comandada por Milton Friedman, foi a grande
fomentadora dos pensamentos ultraliberais, ou neoliberais, que passaram a
ser implementados em escala continental entre as décadas de 1980 e
1990. Friedman preconiza o Estado mínimo, acreditando que as questões
podem ser resolvidas pelo mercado.
No Chile, isso significou a mudança acelerada e abrupta de rumos de
uma nação que vinha aumentando a participação do Estado na economia. “O
evento do Chile teve uma repercussão muito ampla. Para os Estados
Unidos, se desse certo a transição do Chile para o socialismo, isso
influenciaria uma série de países na leitura de que era possível chegar
ao poder e implantar o socialismo dessa forma”, comenta Ayerbe.
Allende acreditava na força das instituições chilenas para conduzir
um processo de mudança por dentro do Estado, sem a necessidade de uma
ruptura nos moldes cubanos. Para isso, contava com uma convivência
institucional de larga data, exceção na América do Sul, o que o levava a
crer que os militares não romperiam com a ordem vigente. Mas não foi
esse o caminho escolhido pelos leais a Pinochet, que em 11 de setembro
de 1973 bombardearam o Palácio de La Moneda, um episódio forte e de
caráter simbólico para a história latino-americana.
O professor da Unesp pontua que havia dois lados opostos muito claros
na região. Em um flanco, o crescimento dos regimes militares. Em outro,
o fortalecimento das linhas da esquerda que acreditavam na
possibilidade de êxito da luta armada. “Na avaliação dos dois lados, era
possível que houvesse uma reviravolta na região com uma sucessão de
movimentos revolucionários que chegasse ao poder.”
Heranças
Este ano, o Chile promoveu a exumação do corpo de Allende para sanar
uma dúvida de fundo histórico. Quando do bombardeio, o presidente foi
morto ou cometeu suicídio? A mensagem deixada pelo político da Unidade
Popular e os depoimentos de amigos permitiam supor se tratar de um
atentado à própria vida, mas o exame se fazia necessário para dirimir
qualquer resquício de inquietação. Por fim, a perícia comprovou a tese
do suicídio, o que colocava no horizonte a possibilidade de um 11 de
Setembro mais tranquilo.
Pelo contrário. A hora é de contestação. Quando as massivas marchas
começaram a incomodar o governo, Piñera não hesitou em lançar mão de um
decreto da época de Pinochet que permite a repressão a reuniões públicas
que não tenham sido autorizadas pelo poder público. A Organização dos
Estados Americanos (OEA) reagiu, e pontuou que o Estado chileno deve
respeitar os direitos à expressão, à manifestação e à reunião pública.
Os líderes dos movimentos de contestação foram além, e usaram os
entendimentos da OEA para indicar que a lei do país não pode ignorar o
que está decidido em caráter internacional. Agora, caberá ao Judiciário
definir a validade do decreto.
De todo modo, o estrago na imagem do presidente está feito, e ele
enfim se rendeu à abertura de negociações com os jovens, mas logo
recebeu o aviso de que tudo será submetido à avaliação das massas e de
que só se aceita negociar com base em um novo sistema, sem a tomada de
medidas que apostem na estrutura educacional atual, como tentara fazer
Piñera por duas vezes. A intenção é ainda mudar a Constituição para
garantir a realização de plebiscitos, hoje vetados.
A manutenção de uma Carta Magna com pontos anacrônicos evidenciou que
a Concertação, que assumiu o país logo após o fim da era Pinochet, não
rompeu de todo com o passado. Durante muitos anos, o Chile se orgulhou
de haver realizado uma transição pacífica, negociada, diferentemente da
ruptura promovida na Argentina.
Em 1980, o ditador realizou um plebiscito para saber se deveria
seguir ou não no poder. A população votou pela saída do militar, mas
esse hasta luego demorou oito anos para se concretizar. Agora, uma nova
geração vem a público para bradar: a transição não foi pacífica, ela foi
incompleta. Em suma, a crença no mercado como solução para todos os
males sociais não desapareceu. “A Concertação apostou que era necessário
investir na coesão social, mas manteve a lógica liberal, privatista, e
esse modelo não funciona para a maioria”, diz Ayerbe.
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