Por Washington Araujo em 02/09/2011 na edição 657
Espanto, perplexidade, surpresa. Alguém em sã consciência poderia dizer
que teve uma destas reações ao deparar com a capa da revista Veja (nº 2232, de 31/8/2011)? Só se for a de um brasileiro residindo em Berlim ou em Nairobi. Veja
pode ser acusada de práticas jornalísticas pouco usuais, politicamente
destemperada, editorialmente desequilibrada, mas não pode ser acusada de
incoerência. No caso atual, a eterna “bola da vez” é o combativo
militante petista – e sempre combatido pela revista – José Dirceu. E
quem apostar que está difícil nesses tempos de turbulência na economia
internacional “emplacar” um escândalo com fortes cores nacionais
apostará corretamente, pois nesses casos a revista da Abril lança mão de
seu tema-de-escândalo-habitual: Zé Dirceu.
Uma rápida busca nos arquivos digitalizados da própria revista mostra
nada menos que 49.587 resultados quando preenchemos o campo de pesquisa
as palavras “José Dirceu”. E se formos pesquisar por edição, teremos que
bisbilhotar – algo que a revista faz com maestria – nada menos do que
em 91. Este é o número de vezes em que, no período 2002-2011, José
Dirceu irá figurar na capa da revista, seja na manchete ou em chamadas
secundárias.
Em uma breve retrospectiva vemos o vírus insidioso da intriga em seu
nascedouro, como a farejar a proximidade inevitável do poder. E assim
nasce a primeira chamada lateral de capa (25/9/2002): “José Dirceu: O
homem que faz a cabeça de Lula”. E perfil mostra o guerrilheiro
que treina em Cuba, participa ativamente da luta contra a ditadura
brasileira e, foragido, se submete a uma cirurgia plástica no rosto. A
segunda “aparição”, ocorre na edição de 6/11/2002, quando Dirceu divide a
capa-palco com dois outros ministros do primeiro governo Lula – Antonio
Palocci e Luiz Gushiken. Os três vestidos a caráter para ilustrar a
chamada que guarda certa nostalgia dos tempos do Brasil Império. Diz a
manchete: “A cúpula da nova corte – Os três mosqueteiros com quem é
preciso falar para ser ouvido no governo Lula”. O texto tem um único
objetivo: mostrar quem tem poder real no novo governo e classificar as
demais autoridades como meros figurantes, resultado de acertos de
promessas a partidos políticos ao longo da campanha presidencial.
Escolhidos a dedo
Chega o ano de 2004 e Veja mostra a que veio, elegendo José
Dirceu como representante-mor do “mal” que se apossa do corpo do Brasil,
quase como uma entidade sobrenatural, não obstante a chamada lateral de
sua capa de 3/3/2004 parecesse vender a imagem de um
ex-ministro-todo-poderoso em franca desgraça: “José Dirceu: O ministro
continua encolhendo”.
Para chegar à tese do encolhimento do detentor de poder político, a
revista vinha desde 2003 lançando farpas e lanças, como par dividir de
forma irremediável aqueles mesmos três que antes saudara como sucedâneos
de Athos, Portus e Aramis. É o período em que escapa da artilharia
pesada apenas o D’Artagnan redivivo em Luiz Inácio Lula da Silva. E
escapa porque consegue se manter em crescente popularidade junto aos
milhões de súditos, para usar a metáfora acolhida pela revista. Logo na
semana seguinte a edição de Veja (10/3/2004) traz seu rosto tomando toda a capa e os dizeres simulando desabafo do retratado: “Dirceu: Não vou sair do governo”.
São muitas matérias, geralmente citando fontes em off, frases
recolhidas fora do contexto em que foram ditas e reajuntadas a contextos
mais atuais, mas tendo um único objetivo: manter com Dirceu a aura de
malévolo, gângster, traficante de influência nato e outros epítetos nada
lisonjeiros a alguém que tem claro protagonismo político e partidário,
além de sagaz operador do governo que ajudou a eleger ao criar
estratégias vitoriosas e reconhecidas mesmo por seus mais acerbos
adversários. Esta abordagem que cada vez mais se enraíza no modo-Veja-de-fazer-jornalismo
deságua em outra capa com o rosto do ex-ministro e a manchete
premonitória e sombria (3/8/2005): “O Risco Dirceu”.
De 2005 a 2007, José Dirceu estará sempre relacionado com o que a
grande imprensa optou por chamar de “Mensalão do PT”. Matérias e
quase-reportagens no período esposarão teses fatalistas tendo como ponto
de convergência o impeachment do presidente Lula, a desmoralização
completa dos partidos de esquerda, em particular do Partido dos
Trabalhadores. As “páginas amarelas”, aqueles que abrem as edições de Veja
com “grandes entrevistas”, serão literalmente amareladas com
entrevistados que desenvolvam qualquer tese, por mais estúpida que seja,
para desmerecer ou se contrapor frontalmente a quaisquer das políticas
públicas mais vistosas do governo Lula: o Bolsa Família, a transposição
de águas do Rio São Francisco, o ProUni, a política de ações afirmativas
(cotas para negros, índios nas universidades). Entrevistados mostrarão
por a+b que o Bolsa Família é na realidade uma Bolsa-Esmola, que o
programa tem apenas apelo eleitoral, é insustentável e só tem porta de
entrada.
Lembram dessas histórias? Entrevistados escolhidos a dedo para prestar
sua devoção incondicional aos cânones do neoliberalismo, ao papel mínimo
do Estado, ao sacrossanto direito a extensões de terras para corar de
inveja os faraós do antigo Egito. O acesso de afrodescendentes às
universidades através de cotas receberá a cada semana um novo petardo
onde tais luminares encontrarão apenas mazelas sociais no Brasil e nunca
mazelas raciais.
Imprensa criminosa
Na edição de 19/9/2007 a chamada lateral na capa é um primor de síntese
da atividade judiciária: “Caso MSI/Corinthians: A Polícia Federal
descobre as pegadas de José Dirceu”. A criminalização de José Dirceu
parece fazer parte do manual de redação da revista. É quando Veja
levanta suspeitas, investiga, acusa, julga, condena, acompanha o
cumprimento da pena e veta qualquer direito ao contraditório. O Tribunal
Midiático parece ter mais poder destruidor que Tribunal regular,
instância judiciária em uma sociedade democrática.
O Tribunal Midiático recebe o apoio não falado, não escrito, não
reverberado, não consignado de seus pares, igualmente juízes e donos do
mesmo poder de noticiar, informar, afirmar, acusar, julgar, condenar.
Para integrar tal Corte basta ter jornal impresso com alta tiragem e
ampla circulação diária, ter concessão pública de exploração de canal de
tevê aberta e emissora de rádio com cobertura nacional em AM e FM, além
de vistosos portais na internet e a propriedade de alguns canais de
tevê a cabo.
Como um contrato de gaveta, sem legitimidade ou valor legal perante o Poder Público, os que integram o Tribunal Midiático agem à la James
Bond, aquele velho personagem vivido por Sean Connery, cujo poder
estava inscrito em sua identidade: “Licença para matar”. A verdade é que
a maior concessão que um capo da mídia pode fazer em relação a
um desafeto é lhe conceder, eventualmente, espaço para escrever algo,
colocar de pé uma ideia. Mas nunca para se contrapor de maneira frontal e
explícita contra o veículo de comunicação que assaque contra sua honra,
invada sua privacidade, utilize de banditismo para fazer circular a
“sua” verdade sobre um determinado assunto. Qualquer assunto.
Chega agosto, mês de desgosto para alguns, mês de tragédias nacionais
na política brasileira (Getúlio Vargas, Jânio Quadros etc). E a revista Veja parece continuar impressionada com a saga de Mario Puzo, com o seu Don Corleone, de O Poderoso Chefão.
A capa da edição de 31/8/2011 traz o rosto de José Dirceu, óculos
escuros, meio-sorriso mafioso, bem versão Marlon Brando, vestindo o
personagem de Puzo. O texto de capa é, muito provavelmente, o mais
destoante entre uma chamada de capa e sua matéria interna: “O Poderoso
Chefão / O ex-ministro José Dirceu mantém um ‘gabinete’ num hotel de
Brasília, onde despacha com graúdos da República e conspira contra o
governo da presidente Dilma”.
O que merecia mesmo uma ampla reportagem é a metodologia adotada pela
revista para cumprir sua pauta. Repórter se passando por companheiro de
quarto de hotel de José Dirceu. Repórter tentando conseguir a chave do
apartamento de José Dirceu com a camareira. Imagens citadas/retratadas
na revista como se houvessem sido cedidas pela segurança do hotel –
aliás, e isso parece inacreditável, o mesmo hotel que lavrou boletim de
ocorrência em delegacia de polícia dando conta de hóspede suspeito
querendo invadir um quarto. Etc., etc., etc. Os crimes lançados na
“reportagem” infelizmente, para a revista, não são tipificados no Código
Penal brasileiro: receber visitas em seu quarto de hotel, visitas que
tanto podem ser de entregadores de pizza ou comida chinesa, como de
parlamentares ou mesmo ministros de Estado.
Não discorro mais sobre o assunto porque Ricardo Kotscho já disse tudo sobre esta última parte (ver “Repórter não é polícia; imprensa não é justiça”. A pulga que tenho na orelha é saber se, por algum acaso, repórteres de Veja estagiaram recentemente no jornal News of the World
do realmente mafioso midiático Rupert Murdoch. Caso tenham estagiado,
pelo jeito não aprenderam bem as lições que somente uma imprensa
criminosa poderia ensinar.
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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]
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