Miguel do Rosário
Vindo para o escritório, muito cedo, passei por uma dessas kombis que
vendem hamburguer e bebidas. Havia um punhado de homens consumindo
cerveja. Um moralista barato pensaria estar diante de vagabundos, e os
condenaria em silêncio, estendendo a condenação ao país inteiro, como
sói acontecer a nossos reacionários sem pedigree. Um observador mais
atento talvez descobrisse que são trabalhadores, que passaram o final de
semana inteiro, em turnos sucessivos, ralando em algumas das centenas
de casas de show e bares da Lapa; e que agora, com dinheiro no bolso,
descontraem-se e trocam ideias. Cada um sabe o que fazer para conservar a
saúde mental: uns se entopem de rivotril, outros bebem cerveja, alguns
cancelam a assinatura do Globo.
Estamos sempre julgando os outros segundo nossos padrões, e por isso
mesmo sempre cometendo injustiças. Um empregado de escritório, que há
trinta anos acorda cedo para ir ao trabalho, de segunda a sexta, terá
dificuldade para entender aquele personagem bebendo cerveja às seis
horas da manhã numa kombi da Mem de Sá. No entanto, ambos são
trabalhadores dignos, pagadores de impostos e cidadãos que contribuem
para o nosso desenvolvimento econômico e social. Seria ridículo
estabelecer uma hierarquia moral entre os dois.
A Constituição proíbe um magistrado, por exemplo, de “receber, a
qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas
físicas, entidades públicas e privadas” e “dedicar-se à atividade
político-partidária”.
Já um político vive uma situação diametralmente oposta. O capítulo
dedicado aos partidos políticos, na Constituição Federal, é bastante
sucinto. Deixa bem claro, porém, em seu artigo primeiro, que eles têm
autonomia para adotar “os critérios de escolha e regime de suas
coligações eleitorais, sem vinculação entre as candidaturas em âmbito
nacional, estadual, distrital ou municipal”. Podem receber recursos
financeiros de pessoas físicas, entidades privadas, e tem direito, por
lei, a um fundo partidário bancado pelo erário público.
Realidades completamente opostas, que encetam, naturalmente, formas diferentes de pensar.
Outro dia, li um artigo da Teresa Cruvinel, esta sim uma decana em
democracia, porque vivenciou durante décadas, como repórter política, a
realidade dos partidos, no qual ela explica aos ministros do STF, que
não existe esse negócio de “entressafra” eleitoral. Os partidos caçam
recursos e batalham eleitoralmente o tempo inteiro. E existe, sim,
solidariedade financeira entre eles. Ayres Britto e cia, data venia,
demonstraram uma grandiosa ignorância acerca da realidade dos partidos
nacionais.
Aqui entra o preconceito contra quem é diferente. Pior, percebe-se
uma visão rancorosa contra a democracia. Não se pode amar
verdadeiramente a democracia, no entanto, sem ter uma visão benevolente
sobre suas entranhas. Nem é o caso de brandir uma supostamente salvadora
“reforma política”. Nenhuma reforma política irá “limpar” a democracia
de sua característica fundamental: os candidatos e partidos concorrem
entre si. Se há concorrência, impõem-se as leis da concorrência, que
nenhum “financiamento público exclusivo” irá resolver. Ganha a eleição
quem persuadir o eleitor, e para isso concorrerá a qualidade da
divulgação. Seja com dinheiro público ou privado, essa qualidade deve
ser paga, porque qualquer coisa que envolva mão-de-obra e trabalho,
envolve dinheiro.
Sou favorável ao financiamento público de campanha, mas sem proibir o
privado. Porque é justamente a proibição que leva ao crime. O pecado
nasce da lei, já ensinava São Paulo.
Grande ingenuidade, por sua vez, e os fascismos nasceram, em boa
parte, de intenções ingênuas, querer separar totalmente dinheiro e
campanha política. Anunciar que “não ganho um real, faço campanha por
ideal” é uma verdade muito relativa. Trabalho não existe sem dinheiro,
ou sem algum retorno, nem que seja intelectual, ou na forma de
benefícios futuros (como defender um candidato que apóia expansão da
universidade e, anos depois, ser beneficiado por esta expansão). Seria
até engraçado se depois de criminalizar a política e a democracia,
houvesse uma campanha (estimulada por nossos mais brutais capitalistas)
para criminalizar os benefícios da política. Até um escravo trabalha em
troca de alguma coisa, só que na forma de alimentação e moradia. No
caso, ele não é livre, e essa é a diferença. Se um jovem trabalha numa
campanha sem ganhar nada, é porque seu pai está bancando; ou ele mesmo o
faz, com vistas a um ganho futuro, para ele ou para o segmento social
do qual faz parte.
Enfim, vivemos um clima curioso de perseguição à democracia, em todos
os sentidos. Curioso porque ocorrem ao mesmo tempo em que os valores
democráticos são exaltados como se fossem princípios religiosos. Só que
democracia não é religião. Tampouco é uma filosofia. Na religião,
persegue-se um ideal de fé. Na filosofia, um ideal de verdade. Na
política, persegue-se o poder. O valor da democracia, a sua virtude, o
que a torna supostamente superior a outros regimes, reside na fonte do
poder, conforme consta no Artigo primeiro da Carta Magna:
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Não se pode criminalizar o poder. Ele é o insumo básico da política. É
pelo poder que se luta. Operários, camponeses, industriais,
professores, bancários, empreiteiros, todos querem um naco. A
pluralidade política de um país como o Brasil estará sempre assegurada
em função dos interesses diversos. Os ministros do STF não podem
criminalizar o que é a essência da política: a luta para alcançar o
poder e, quando alcançado, mantê-lo. Alguns filósofos, como
Schopenhauer, Nietzsche e Espinoza, consideravam inclusive que esta luta
é a essência da própria vida, o que eu acho que faz muito sentido.
Toda coisa almeja – na medida em que isso está em seu poder – permanecer em si mesma, diz Espinoza.
Alguns companheiros instruídos e inteligentes têm zombado das fortes
críticas que emergem na blogosfera acerca da atuação do Supremo Tribunal
Federal (STF) no julgamento da Ação Penal 470. Deveriam, contudo,
agradecer, porque estas críticas fortalecem a nossa democracia. Cito
novamente o artigo de
Teresa Cruvinel, no qual ela menciona o célebre penalista Nelson
Hungria: “o Supremo tem apenas o privilégio de errar por último”. Frase
bonita, simples e filosófica. Tão diferente do que li hoje na coluna de
Paulo Guedes, no Globo, que termina dizendo que os réus petistas foram
condenados porque “ofenderam aos deuses do Supremo, e por eles serão
punidos”.
Isso é uma brincadeira de péssimo gosto! Não se pode atribuir
qualidades divinas, nem como figura de linguagem, a uma entidade
republicana.
O fato de haver críticas à atuação do STF é sinal de vitalidade
democrática. Deve ser estimulado, e na verdade o que vemos na grande
imprensa é um enorme desequilíbrio, porque as opiniões críticas ficam
num longínquo segundo plano, enquanto os elogios se tornaram
ridiculamente laudatórios. Joaquim Barbosa agora é desenhado por Chico
Caruso com uma coroa na cabeça, e o Gois já divulgou o site em que se
defende a sua candidatura para a presidência da república em 2014!
A democracia é um regime que comporta alguns riscos e, para ser
autêntica e saudável, precisa de cidadãos vigilantes. Toda instituição
republicana tem de ser exposta ao contraditório. Neste sentido, e já
escrevi bastante sobre isso, acho que os governos petistas acabaram se
beneficiando da crítica ferrenha da grande mídia. No entanto, eles se
beneficiaram porque a grande mídia, por sua vez, também sofreu críticas,
por parte da blogosfera. A mesma coisa vale para o STF. Ele precisa ser
criticado, para seu próprio bem. Porque é lamentável que haja
desconfiança, em setores importantes da sociedade, de que seus membros
se curvaram à pressão política de grupos midiáticos altamente
partidarizados.
Não se trata de defender a impunidade. Aí reside, a meu ver, a
injustiça daqueles que, achando-se muito descolados, desqualificam os
internautas que criticam o STF. É claro que não! Prendam os corruptos,
inclusive do PT. Sobretudo do PT! O que tem gerado acerbos protestos não
é isso, e sim o estranho discurso dos eminentes juízes, com
proselitismos absurdos e delirantes sobre a prática política, dos quais
abusam para preencher as lacunas processuais. Ayres Britto, presidente
do STF, chegou ao cúmulo de condenar o presidencialismo de coalizão! Me
desculpem, mas isso é positivamente ridículo. A Constituição é muito
clara: é vetado aos juízes dedicarem-se à atividade político-partidária.
E mesmo se não o fossem, criticar levianamente, ou pior, criminalizar,
um dos modelos mais difundidos e mais adequados a democracias complexas e
de grande porte como o Brasil, é mais do que ignorância. Com todo
respeito, excelentíssimos, é cretinice!
O pior é que esses discursos têm unido oposição e sectários num só
bloco. Há muita gente que ainda pensa política de maneira maniqueísta, e
daí voltamos para o debate propriamente político, no qual o STF, com
muita infelicidade, voltou a interferir. Só o meu partido e a minha
ideologia são puros, corretos e bons. Esse é o tipo de sectarismo que o
STF tem defendido, de maneira inconstitucional. É totalmente
contraditório elogiar os feitos do governo Lula e omitir que eles só
foram possíveis justamente porque foram realizadas alianças políticas. O
PT deixou de ser um partido sectário e fez alianças com outras
legendas. A nossa Constituição preza o pluralismo político como um dos
seus princípios fundamentais. O que isso quer dizer? Que devemos
entender a diversidade ideológica como um fator saudável da nossa
democracia. Tanto o cidadão como o partido devem perseguir um conjunto
de princípios, mas sem discriminar os que pensam diferente.
Durkhein causou polêmica ao afirmar que o crime é necessário à
sociedade, porque, não existissem os grandes crimes, como assassinato e
roubo, qualquer tapinha inocente no braço de um colega seria considerado
crime capital. Da mesma forma, se todo mundo fosse de esquerda,
viveríamos um ambiente radicalizado, onde, sei lá, emprestar 10 reais
pra um amigo seria um crime. A esquerda precisa da direita para existir,
e vice-versa, porque todo o ser apenas existe refletido em seu
contrário, conforme ensina Hegel. Não existisse direita, não haveria
esquerda.
Os contrapontos ideológicos integram não apenas a democracia, mas a
própria psique humana. Há uma dialética entre liberdade e igualdade,
assim como há entre direita e esquerda. Uma ideologia não se aprimora
destruindo a outra, mas incorporando-a e formando uma síntese. A utopia
da modernidade não é uma sociedade esquerdista, e sim uma sociedade onde
os princípios básicos do humanismo, solidariedade, democracia e
liberdade, estarão enraizados de maneira definitiva e profunda num
regime político de alcance universal.
A crítica ao STF é essencial, todavia, porque acabamos de testemunhar
um golpe em Honduras protagonizado justamente pela suprema corte. No
Paraguai, o judiciário chancelou, numa decisão instantânea, um golpe
parlamentar. A América Latina tem o costume de experimentar “ondas”
políticas. Se a onda é o neoliberalismo, então todos os países, da
Patagônia ao Rio Grande, elegem partidos neoliberais. Se a moda é eleger
presidentes de esquerda, de novo todo mundo caminha junto. Houve um
tempo em que os militares derrubaram presidentes em toda a região. É
mais que natural que, após dois casos em que as cortes supremas
chancelaram deposições relâmpagos de presidentes eleitos, haja um pouco
de paranóia entre os democratas brasileiros!
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