Por Frank
Do Estadão
Vera Rosa, de O Estado de S.Paulo
Mil duzentas e quarenta e seis páginas com anotações feitas a lápis
desapareceram na Universidade de São Paulo (USP). De tão detalhados, os
apontamentos escritos na margem de cada folha, dos dois lados, pareciam
fazer parte do livro Economia e Sociedade , de Max Weber, que sumiu na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Fernando, fã de Paul
McCartney e dono do livro, chegou em casa inconformado. “Estela,
roubaram o meu Weber. É inacreditável! Todas as minhas anotações viraram
pó”, disse ele para a mulher. “Roubaram? Mas onde estava o livro?”,
insistiu Estela, curiosa. “No estacionamento. Dentro do carro”,
respondeu Fernando, de supetão. Sem entender nada, ela prosseguiu o
interrogatório. “E o que aconteceu com o carro? ” A conclusão foi
lógica: “Ué, roubaram também”.
O Fernando do livro é Fernando Haddad, novo prefeito de São Paulo. O
“Santana” velho de guerra de “Dandão”, seu apelido na juventude, foi
furtado em 1995, época do doutorado em Filosofia, na USP. Dezessete anos
depois, porém, ele só se lembra das anotações perdidas naquela edição
especial da Fondo de Cultura Económica. “Você não tem ideia do que é ler
aquele livro inteiro e anotar…”, diz o ex-ministro da Educação,
professor licenciado de Teoria Política na USP. Ana Estela, casada com
Haddad há 24 anos, já está acostumada com essas divagações. “Ele não
liga para coisas materiais. Essa parte é comigo. “
Escolhido pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para
representar a nova geração do PT, pós-mensalão, Haddad agora só tem
tempo para ler relatórios sobre São Paulo. “Comprei na Bienal aquele
livro do Mandela, mas está no meu criado-mudo. Confesso que durmo a cada
cinco páginas”, afirma, rindo, o filho de imigrante libanês
Foi às margens do Lago Paranoá, em Brasília, que começou a ser
desenhada a candidatura de Haddad, um calouro na política, a exemplo da
presidente Dilma Rousseff. A conversa que selou o destino do então
ministro da Educação ocorreu num almoço no Gazebo, especializado em
comida francesa, em março de 2011. Os emissários de Lula foram o
presidente do PT paulista, Edinho Silva, o vice-presidente do partido,
Rafael Marques, o prefeito de São Bernardo do Campo, Luiz Marinho, e o
vereador Alfredinho (PT). “O chefe mandou construir a sua candidatura. E
aí, você topa?”, perguntou Marinho. “Eu topo. Estou à disposição”,
respondeu Haddad. “Então, vamos discutir as tarefas que você tem de
executar. Vamos montar o grupo de apoio para sustentá-lo, mas a
liderança tem de ser sua. ” Com os tradicionais nomes do PT desgastados,
muitos fora de combate desde o escândalo do mensalão, em 2005, Lula
fazia planos para Haddad havia algum tempo. Chamava-o de “menino de
ouro” e chegou a sondá-lo para concorrer ao governo paulista, em meados
de 2009, quando já articulava a candidatura de Dilma à Presidência. “Mas
eu ainda não tinha encerrado o meu ciclo em Brasília”, diz o candidato.
A crise do mensalão foi o passaporte de Haddad para o comando do
Ministério da Educação (MEC), em 29 de julho de 2005. Foi nesse dia que
ele assumiu a cadeira de Tarso Genro, convocado às pressas por Lula para
presidir o PT, que teve a cúpula dizimada. “Meu filho, mas você aceitou
ser ministro com o governo nessas circunstâncias?”, indagou dona Norma,
mãe de Haddad, preocupada com a nomeação. “Mãe, se não fossem essas as
circunstâncias, nunca me ofereceriam o ministério”, reconheceu ele.
No fim de 2010, com Dilma já eleita, Haddad estava de malas prontas
para retornar a São Paulo, decidido a entregar o cargo, quando Lula fez a
proposta que mudou sua vida. “Eu pensei no Fernando como pensei na
Dilma. Eu disse a ele: o PT precisa de um nome novo, com um perfil como o
seu, para atrair a classe média e ser candidato a prefeito de São
Paulo”, conta o ex-presidente.
Haddad se entusiasmou, mas expôs uma
dúvida: “Há espaço no PT para discutir essa tese? ” Lula admite que “não
foi uma tarefa fácil” convencer o partido a aceitar o pupilo e, por
isso, pediu ajuda a Marinho. “Diziam para mim: ‘Ele nem cumprimenta a
gente’. Eu respondia: ‘Ele é tímido’. “
Apesar de filiado ao PT desde 1983, Haddad não era da corrente
majoritária Construindo um Novo Brasil (CNB), do próprio Lula e de José
Dirceu, ex-chefe da Casa Civil e réu do mensalão. Além disso, havia
assinado, em 2005, um manifesto do grupo Mensagem ao Partido, liderado
por Tarso, pregando a “refundação” do PT, na esteira da crise. “Foi
aquele terremoto político que desencadeou a renovação de quadros no PT”,
comenta Tarso, hoje governador do Rio Grande do Sul.
Os capítulos seguintes desse enredo tiveram momentos de alta tensão.
Favorita nas pesquisas para a sucessão do prefeito Gilberto Kassab
(PSD), que chegou a flertar com o PT, a então senadora Marta Suplicy
queria ser candidata. Com rejeição na faixa de 30%, foi preterida por
Lula, pressionada por Dilma e obrigada a desistir da prévia, que nunca
saiu do papel.
Na conversa com ele, em 3 de novembro, Marta chorou. “Eu não entendo, Lula, o que você tem contra mim”, desabafou a ex-prefeita.
Os deputados Jilmar Tatto e Carlos Zarattini e o senador Eduardo
Suplicy também se retiraram do páreo, a pedido do ex-presidente. “Quando
me chamou, Lula falou assim: ‘O Fernando implantou o ProUni e fez
excelente trabalho. Para ganhar a classe média, tem de ser bonitinho,
são-paulino e uspiano’”, recorda Tatto. “Ele achava que os votos da
periferia já eram nossos e ninguém contava com Russomanno. Foi o nosso
erro. ” Magoada, Marta boicotou a campanha por quase dez meses e só foi
para as ruas um dia antes de virar ministra da Cultura. Para apoiar
Haddad, o deputado Paulo Maluf (PP) – que está na lista de procurados da
Interpol – exigiu uma fotografia com Lula, no jardim de sua mansão. Era
o preço da aliança, que garantiu ao candidato do PT 1 minuto e 35
segundos na propaganda eleitoral de TV, a perda da deputada Luiza
Erundina (PSB) como vice da chapa e uma queda de dois pontos porcentuais
nas pesquisas. Erundina desistiu da dobradinha com Haddad 24 horas após
o anúncio da coligação com Maluf. “Não preciso ser vice para fazer
política”, protestou. Presidente do PSB, o governador de Pernambuco,
Eduardo Campos, abriu mão da vaga para o PC do B de Nadia Campeão, sob o
argumento de que a ex-prefeita Erundina era “incontrolável”.
Aos 49 anos, Haddad foi “vendido” pela campanha como “o homem novo
para um tempo novo”. Pesquisas mostraram que as falhas do Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem) não colaram nele, mas a foto com Lula e Maluf
foi interpretada como a volta do velho coronelismo na política. “Nós
fizemos uma cagada”, disse Lula depois, a portas fechadas. Marinho
admite que, horas antes do almoço na casa de Maluf, em 18 de junho,
procurou o ex-presidente na academia onde ele faz reabilitação desde que
terminou o tratamento do câncer na laringe. “Ele não queria fazer a
foto. Fui porta-voz de um pedido da direção do PT. Fiz e faria
novamente”, diz o prefeito, candidato à reeleição.
Haddad conquistou Lula ainda em 2004, quando lhe mostrou um esboço do
ProUni, programa que concede bolsas de estudo em universidades a alunos
carentes. Na época, era secretário executivo na Educação e vinha da
assessoria especial do Planejamento, então chefiado por Guido Mantega.
Antes, tinha trabalhado com João Sayad na Secretaria de Finanças, na
gestão de Marta. “Confesso que achei ruim quando Tarso Genro levou o
Haddad para o MEC. Ele ia ser promovido”, revela Mantega, hoje ministro
da Fazenda. “Dei-lhe a missão de elaborar as Parcerias Público-Privadas e
ele conseguiu entregar dentro do prazo um projeto difícil, que funciona
bem até hoje. ” O candidato do PT odeia atrasos. Na campanha, muitas
vezes chegou antes que os aliados aos compromissos. Nem sempre teve a
companhia de seus pares e muitos reclamaram de sua falta de traquejo
político e do linguajar da academia. Na semana passada, por exemplo,
Haddad disse que Russomanno não tinha plano de governo, mas, sim, um
“simulacro”. Depois, afirmou que a disputa começava a sair da “mornidão”
para a fase da empolgação. “Todo mundo tem um Houaiss em casa”,
devolveu ele, quando questionado sobre o uso de palavras difíceis, numa
referência ao dicionário de Antonio Houaiss.
Com 1,83 metro e pinta de galã, Haddad faz sucesso com as mulheres,
que não raro trocam o seu sobrenome por “Andrade”. Ana Estela confessa
ter um pouco de ciúme. “A gente é humano, né? ” Além da pontualidade, o
petista tem como característica a obsessão por metas. Adquiriu o hábito
quando era vendedor da Mercantil Paulista de Tecidos, a loja de seu pai,
Khalil, na Rua Comendador Abdo Schahin, paralela à 25 de Março. “Ele
saía da Faculdade de Direito, no Largo São Francisco, e ia a pé até lá.
Na sobreloja, tinha duas pilhas de livros: uma só aumentava, com aqueles
já lidos, e a outra diminuía, com os que tinha de ler”, descreve o
jornalista Eugênio Bucci, seu amigo e antecessor na presidência do
Centro Acadêmico 11 de Agosto, a única eleição que Haddad já disputou.
“Eugênio foi o Lula para mim”, compara o ex-ministro, ao lembrar que o
amigo patrocinou sua candidatura ao 11 de Agosto, em 1985, após o
sucesso da chapa The Pravda na diretoria. “Fernando tinha dois ídolos:
Karl Marx e Paul McCartney”, entrega Bucci, ex-presidente da Radiobrás.
Tinha? Até hoje, quando se cansa de assuntos áridos, Haddad surpreende o
interlocutor: “Vamos falar de outra coisa. O que você acha de Paul
McCartney? “.
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