O STF escreve página de vergonha e arbítrio - Artigo
Breno Altman
Poucas vezes, no registro das decisões judiciais, assistiu-se a cenas
tão nefastas como as do julgamento da ação penal 470, o chamado
“mensalão”. A maioria dos ministros da corte suprema, ao contrário do
que se passou em outros momentos de nossa história, dessa vez embarcou
na violação constitucional sem estar sob a mira das armas. Simplesmente
dobrou-se à ditadura da mídia.
A bem da verdade, alguns dos
magistrados foram coerentes com sua trajetória. Atiraram-se avidamente à
chance de criminalizar dirigentes de esquerda e prestar bons serviços
aos setores que representam.
O voto de Gilmar Mendes, por
exemplo, transbordava de revanchismo contra o Partido dos Trabalhadores.
O ministro Marco Aurélio de Mello, o mesmo que já havia dito, em
entrevista, que considerava o golpe de 1964 como um “mal necessário”,
seguiu pelo mesmo caminho. Mandaram às favas a análise concreta das
provas e testemunhos. Apegaram-se às declarações de Roberto Jefferson
para fabricar discurso de rancor ideológico, ainda que disfarçado por
filigranas jurídicas. Outros juizes, porém, simplesmente abaixaram a
cabeça, acovardados. Balbuciavam convicções sem fatos ou argumentos
dignos. A ministra Carmen Lúcia não listou uma única evidência firme
contra José Dirceu ou Genoíno, contentando-se com ilações que invertem o
ônus da prova. Foi pelo mesmo caminho de Rosa Weber, sempre
pontificando sobre a “elasticidade das provas” em julgamentos desse
naipe. O papel nobre e honroso de resistência à chacina judicial coube
ao ministro Lewandovski, o único a se ater com rigor aos autos,
esmiuçando tanto os elementos acusatórios quanto as contraposições da
defesa. Teve a companhia claudicante de Dias Toffoli, sempre apresentado
pela velha midia como “ex-advogado do PT”, sem que o mesmo tratamento
fosse conferido a Mendes, notório aúlico tucano.
Assistimos a
um julgamento político e de exceção. Um aleijão que fere os princípios
constitucionais e contamina as instituições democráticas. O processo
está sendo presidido por teorias que possam levar ao objetivo
pré-concebido, em marcha batida na qual são atropeladas seculares
garantias civis.
A existência da compra de votos dos
parlamentares é reconhecida sem que haja qualquer prova factual ou
testemunhal. A transferência de recursos financeiros entre partidos
passa automaticamente a ser considerada corrupção passiva, mesmo que não
haja ato de ofício ou compromisso ilícito, renegando a jurisprudência
da corte e abrindo as portas para toda sorte de subjetivismo. Quadros de
partido e governo são condenados porque a função que exercem traz em
seu bojo a responsabilidade penal por supostos atos de seus subordinados
ou até por aqueles sobre os quais teriam ascendência não-funcional. Em
nome dessa doutrina, denominada “domínio do fato”, a presunção de
inocência é fuzilada. Cabe ao réu comprovar que não teria como
desconhecer o fato eventualmente delituoso.
Essa coleção de
barbaridades e ofensas à Constituição ontem levou à condenação, por
corrupção ativa, de José Dirceu, José Genoíno e Delúbio Soares. Dos
três, apenas o ex-tesoureiro petista esteva vinculado a situações
materiais, mas sem que houvesse qualquer elemento comprobatório de ação
corruptora. Arrecadou e transferiu irregularmente fundos para os
partidos, e desse procedimento é réu confesso, mas não houve registro
fático que ele algo tivesse comprado que tivesse sido posto à venda
pelos parlamentares denunciados.
Quando o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso conseguiu a emenda da reeleição, o deputado
Ronivon Santiago, então no PFL do Acre, confessou ter recebido 200 mil
reais para dar seu voto a favor dessa medida. Aqui temos valor, fato e
prova mediante confissão – aliás, de um crime que o STF jamais se dispos
a julgar. Nada disso, no entanto, apareceu na ação penal 470. Apenas
ilações e conjecturas a partir de mecanismos anormais de financiamento
partidário ou eleitoral.
Mas o caso de Dirceu e Genoíno é
ainda pior. Não aparecem na cena de qualquer crime, delito ou
contravenção. A suposta prova contra o ex-guerrilheiro do Araguaia é um
contrato de empréstimo contabilizado e quitado, cujas verbas não constam
das transações interpartidárias, como bem demonstrou o ministro
Lewandovski. Foi condenado porque a ele se aplicou a lógica de exceção:
se era presidente do PT, não tinha como ser inocente das denúncias
formuladas.
A condenação do ex-chefe da Casa Civil, por sua
vez, apresenta-se como a maior das brutalidades legais cometidas. Salvo
acusações do condenado Roberto Jefferson, não há contra si qualquer
testemunho ou evidência. Ao contrário: dezenas de depoimentos
juramentados corroboram sua inocência, formando verdadeira contra-prova.
Mas a maioria dos ministros sequer se deu ao trabalho de citá-los ou
analisá-los.
Ambos, Dirceu e Genoíno, tiveram seus direitos
degolados para que os interesses mobilizadores do processo se
consumassem. Há sete anos as forças conservadoras e seu partido
midiático fizeram do chamado “mensalão” o centro da estratégia para
enfrentar a liderança crescente do PT e do presidente Lula, de
vitalidade reconfirmada em seguidas eleições, incluindo a do último
domingo. Condenar os dois dirigentes era marco imprescindível dessa
escalada.
O STF, acossado pela midia corporativa, além de
aviltado pelo reacionarismo e a covardia, prestou-se a um triste papel,
escrevendo página de vergonha e arbítrio em sua história. De instituição
responsável pela salvaguarda constitucional, abriu-se para ser o teatro
onde se encena a reinvenção da direita. Quem viver, verá.
Breno Altman é diretor editorial do sítio Oper
Nenhum comentário:
Postar um comentário