quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Basta de conivência

Do VioMundo

publicado em 24 de outubro de 2012


Na aldeia de Guaiviry, em Mato Grosso do Sul (MS), fui recebida por um pequeno grupo de crianças indígenas. Foto: Mariana Boujikian

por Mariana Boujikian Felippe, especial para o Viomundo

Ao chegar à aldeia de Guaiviry, em Mato Grosso do Sul (MS), fui recebida por um pequeno grupo de crianças indígenas. Descalças, com os pezinhos cobertos de terra e as caras pintadas, elas dançavam de mãos dadas, e entoavam juntas uma canção de boas-vindas. Penduradas em cada uma delas, placas com os dizeres “Nós quero educação já/ Nós quero demarcação já/Pelo amor de deus parem o massacre contra os povos indígenas guarani”. As crianças guarani-kaiowá fazem parte de uma das maiores etnias do Brasil, e aprendem desde pequenas que precisam lutar para serem reconhecidas como cidadãs e terem seus direitos mais básicos respeitados. As placas eram sua forma de protesto, e representavam a voz de jovens brasileiros que parecem ter sido esquecidos há anos pelo seu próprio país.

Desde o seu descobrimento, o país adotou a prática do extermínio destes povos que cometeram um único crime: o de mostrar que é possível viver de uma maneira diferente. Para os guarani-kaiowá, a luta pela terra também é uma forma de resistência ao modo de vida do homem branco. Na sua língua, as terras tradicionais são chamadas de “tekoha”, palavra que vem de “teko” (modo de ser) + “ha” (lugar), o que poderia ser traduzido como “lugar onde se pode viver do nosso próprio jeito”. Para eles, os tekoha são lugares sagrados, onde é possível entrar em contato com os espíritos da terra e exercer sua própria cultura.

A guerra contra os índios de MS escancarou-se na década de 1940, quando começou o processo de colonização da região, com incentivo do governo federal. Os índios foram expulsos de suas terras, e forçados a se concentrar em oito pequenas reservas. Atualmente, os guarani-kaiowá estão confinados em cerca de 45 mil hectares, o que equivale a menos de 1% de seu território original. Onde antes estavam seus tekoha, agora há o mar de soja, cana-de-açúcar e pastos de boi. Os territórios sagrados deram lugar à produção desenfreada de commodities, que levarão o Brasil ao rol das novas potências econômicas.

A reação ao confinamento logo veio, ganhou força nos anos 1980, e vem retomando pequenas porções de terra desde então. Em sua luta, o movimento indígena enfrenta a força dos grandes proprietários de terra e do agronegócio. Hoje, MS abriga a segunda maior população indígena do país, mas é um Estado onde a lei pertence aos fazendeiros. Em agosto desse ano, Luis Carlos da Silva Vieira, proprietário do munícipio de Paranhos, declarou abertamente a um site de notícias: “Esses índios aí, alguns perigam sobrar. O que não sobrar, nós vamos dar para os porcos comerem”.

Infelizmente, a violência não se restringe ao discurso dos fazendeiros locais: neste último setembro, pistoleiros dispararam por horas contra os índios que participavam pacificamente de uma das retomadas, neste mesmo município. Pesquisas mostraram que, de 2003 a 2010, foram assassinados mais indígenas em MS do que em todo o resto do país. Grandes líderes vêm sendo perseguidos, ameaçados, e até mortos, como ocorreu com Nisio Gomes no ano passado. A impunidade dos mandantes se perpetua, e a terra continua sendo manchada de sangue.

Com restritas áreas para desenvolver suas práticas culturais e realizar plantio e caça, muitas aldeias passaram a depender de cestas básicas do governo para sobreviver. A consequência é um alto índice de morte por desnutrição infantil. Algumas comunidades buscam sustento trabalhando nos canaviais, conhecidos pelas suas condições trabalhistas precárias. Diante desse quadro, não é difícil entender porque o número de suicídios entre jovens indígenas é quatro vezes maior do que entre jovens do resto do país.

A Constituição Federal prevê que todos os territórios tradicionais deveriam ter sido demarcados até 1993, mas até agora, apenas 1/3 das terras foi demarcado. A luta pela demarcação de terras esbarra na lentidão do Judiciário em julgar processos pendentes, e no descaso do Executivo em homologá-las.

Para que possamos chamar este país de democrático, é essencial que haja o reconhecimento do direito desses povos aos seus territórios. As terras precisam ser devolvidas aos seus ocupantes originais, para que o Brasil seja de fato “um país de todos”. O Estado não pode mais ser conivente com o extermínio velado dessas populações. É preciso que cada cidadão divulgue essa causa, que é de todos os brasileiros. O rosto de cada criança indígena que implora pelo fim do genocídio contra seu povo é a face de um Brasil indigno e desumano. É preciso que as vozes das crianças de Guaiviry e de todas as outras comunidades reverberem e sejam ouvidas. É preciso que se faça justiça, pois os povos indígenas não podem esperar mais.

Mariana Boujikian Felippe é estudante de Ciências Sociais da USP.


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