publicado em 24 de outubro de 2012
Na aldeia de Guaiviry, em Mato Grosso do Sul (MS), fui recebida por um pequeno grupo de crianças indígenas. Foto: Mariana Boujikian
por Mariana Boujikian Felippe, especial para o Viomundo
Ao chegar à aldeia de Guaiviry, em Mato Grosso do Sul (MS), fui
recebida por um pequeno grupo de crianças indígenas. Descalças, com os
pezinhos cobertos de terra e as caras pintadas, elas dançavam de mãos
dadas, e entoavam juntas uma canção de boas-vindas. Penduradas em cada
uma delas, placas com os dizeres “Nós quero educação já/ Nós quero demarcação já/Pelo amor de deus parem o massacre contra os povos indígenas guarani”.
As crianças guarani-kaiowá fazem parte de uma das maiores etnias do
Brasil, e aprendem desde pequenas que precisam lutar para serem
reconhecidas como cidadãs e terem seus direitos mais básicos
respeitados. As placas eram sua forma de protesto, e representavam a voz
de jovens brasileiros que parecem ter sido esquecidos há anos pelo seu
próprio país.
Desde o seu descobrimento, o país adotou a prática do extermínio
destes povos que cometeram um único crime: o de mostrar que é possível
viver de uma maneira diferente. Para os guarani-kaiowá, a luta pela
terra também é uma forma de resistência ao modo de vida do homem branco.
Na sua língua, as terras tradicionais são chamadas de “tekoha”, palavra
que vem de “teko” (modo de ser) + “ha” (lugar), o que poderia ser
traduzido como “lugar onde se pode viver do nosso próprio jeito”. Para
eles, os tekoha são lugares sagrados, onde é possível entrar em contato
com os espíritos da terra e exercer sua própria cultura.
A guerra contra os índios de MS escancarou-se na década de 1940,
quando começou o processo de colonização da região, com incentivo do
governo federal. Os índios foram expulsos de suas terras, e forçados a
se concentrar em oito pequenas reservas. Atualmente, os guarani-kaiowá
estão confinados em cerca de 45 mil hectares, o que equivale a menos de
1% de seu território original. Onde antes estavam seus tekoha, agora há o
mar de soja, cana-de-açúcar e pastos de boi. Os territórios sagrados
deram lugar à produção desenfreada de commodities, que levarão o Brasil
ao rol das novas potências econômicas.
A reação ao confinamento logo veio, ganhou força nos anos 1980, e vem
retomando pequenas porções de terra desde então. Em sua luta, o
movimento indígena enfrenta a força dos grandes proprietários de terra e
do agronegócio. Hoje, MS abriga a segunda maior população indígena do
país, mas é um Estado onde a lei pertence aos fazendeiros. Em agosto
desse ano, Luis Carlos da Silva Vieira, proprietário do munícipio de
Paranhos, declarou abertamente a um site de notícias: “Esses índios aí,
alguns perigam sobrar. O que não sobrar, nós vamos dar para os porcos
comerem”.
Infelizmente, a violência não se restringe ao discurso dos
fazendeiros locais: neste último setembro, pistoleiros dispararam por
horas contra os índios que participavam pacificamente de uma das
retomadas, neste mesmo município. Pesquisas mostraram que, de 2003 a
2010, foram assassinados mais indígenas em MS do que em todo o resto do
país. Grandes líderes vêm sendo perseguidos, ameaçados, e até mortos,
como ocorreu com Nisio Gomes no ano passado. A impunidade dos mandantes
se perpetua, e a terra continua sendo manchada de sangue.
Com restritas áreas para desenvolver suas práticas culturais e
realizar plantio e caça, muitas aldeias passaram a depender de cestas
básicas do governo para sobreviver. A consequência é um alto índice de
morte por desnutrição infantil. Algumas comunidades buscam sustento
trabalhando nos canaviais, conhecidos pelas suas condições trabalhistas
precárias. Diante desse quadro, não é difícil entender porque o número
de suicídios entre jovens indígenas é quatro vezes maior do que entre
jovens do resto do país.
A Constituição Federal prevê que todos os territórios tradicionais
deveriam ter sido demarcados até 1993, mas até agora, apenas 1/3 das
terras foi demarcado. A luta pela demarcação de terras esbarra na
lentidão do Judiciário em julgar processos pendentes, e no descaso do
Executivo em homologá-las.
Para que possamos chamar este país de democrático, é essencial que
haja o reconhecimento do direito desses povos aos seus territórios. As
terras precisam ser devolvidas aos seus ocupantes originais, para que o
Brasil seja de fato “um país de todos”. O Estado não pode mais ser
conivente com o extermínio velado dessas populações. É preciso que cada
cidadão divulgue essa causa, que é de todos os brasileiros. O rosto de
cada criança indígena que implora pelo fim do genocídio contra seu povo é
a face de um Brasil indigno e desumano. É preciso que as vozes das
crianças de Guaiviry e de todas as outras comunidades reverberem e sejam
ouvidas. É preciso que se faça justiça, pois os povos indígenas não
podem esperar mais.
Mariana Boujikian Felippe é estudante de Ciências Sociais da USP.
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