Por Marco Antonio L.
Da Carta Capital
Da macroeconomia à inclusão nas cidades
João Sicsú
O Brasil mudou nos últimos dez anos. Mudou porque houve uma
queda acentuada do desemprego, uma drástica elevação do valor do salário
mínimo e uma significativa ampliação do crédito. O desemprego de dois
dígitos caiu para menos que 6%. O salário mínimo subiu mais que 60% em
termos reais. O crédito dobrou como proporção do PIB e, hoje, já é
superior a 50%. Esses números mudaram a vida das pessoas.
O ciclo econômico de 2007-2010 foi distributivista de renda. Para
milhões de desempregados, o ciclo teve uma qualidade especial: gerou
empregos com carteira assinada. Um resultado: o afastamento
econômico-social foi reduzido. O emprego trouxe renda e melhoria, por
exemplo, para as habitações em favelas: abrigos de madeira foram
substituídos por barracos de alvenaria. Eletrodomésticos, sofás e certos
alimentos (até então, inacessíveis) foram adquiridos.
O emprego levou a classe média C e os pobres ao mercado de trabalho
das localidades onde vivem ou trabalham as altas classes médias e os
ricos. Esse foi o momento onde os mais necessitados perceberam que não
basta ter emprego. O emprego é essencial, mas é preciso ter transporte,
saneamento, iluminação, coleta de lixo, varrição, segurança pública,
áreas de lazer etc… é preciso ter direito à cidade onde moram. Sob estas
condições, indivíduos que já realizam o consumo (uma atividade privada)
passaram a desejar o investimento (público) para todos.
O crescimento econômico e o emprego, portanto, podem melhorar as
condições de vida de cada família dentro de cada casa, mas a vida do
cidadão urbano contemporâneo se desenrola, em grande parte, na rua. A
vida na rua, ou seja, o acesso à cidade, unicamente quem pode melhorar
são as políticas públicas. Com mais renda, uma família pode melhorar o
seu espaço privado – renda e emprego não são condições suficientes para
que o cidadão tenha acesso a equipamentos e serviços públicos. A
garantia de acesso universalizado a serviços e equipamentos urbanos
somente pode ser dada pelos poderes públicos.
Um exemplo é importante: redes (e não apenas linhas) de transportes
são necessárias porque indivíduos passaram a ter interesses variados. É a
jovem adulta da classe C, de 19 anos, que estuda no colégio público do
ensino médio, faz um curso de línguas, trabalha no comércio e tem vida
social. Ela não precisa somente de uma linha de transporte que ligue a
sua casa ao trabalho, tal como sua mãe precisava há 30 anos. Ela precisa
de uma rede de transportes, assemelhada às redes neurais, com várias
possibilidades, conexões e retornos. Ela precisa de ônibus, metrô,
ciclovia e trem em várias direções, sentidos e com a possibilidade de
rápido retorno em caso de mudança de plano.
A desintegração dos espaços metropolitanos (em centros e periferias)
das grandes cidades ocorre devido à falta de planejamento urbano, falta
de políticas habitacionais e ao desequilíbrio do gasto público – que
prioriza regiões indicadas pela dinâmica da valorização imobiliária.
Favelas e bairros periféricos das grandes metrópoles e das cidades do
entorno são colocados à distância, também, devido à falta de
investimentos em transporte público. Além disso, seus moradores são
estigmatizados porque habitam regiões sem segurança pública, coleta de
lixo e saneamento. Moram em regiões violentas, sujas e com esgoto a céu
aberto. É um afastamento territorial e social de milhões de cidadãos.
Não há planejamento e gestão nas maiores cidades brasileiras e
principais Estados da Federação. Há inauguração de obras. As campanhas
eleitorais enfatizam as inaugurações de novas vias rodoviárias, dos
novos hospitais, das novas pontes, das novas escolas etc. Mas, as novas
vias de acesso não são mantidas e os novos prédios de escolas e
hospitais não oferecem serviços proporcionais às pompas de suas
inaugurações. Por parte de governantes, não há a preocupação com a
entrega de serviços de qualidade e a manutenção dos equipamentos
públicos das cidades e estados. Há somente a inquietação com a
necessidade de inauguração de obras, coincidindo com os interesses de
construtoras, empreiteiras e da indústria automobilística.
A ligação entre o centro e a periferia é feita, principalmente, por
via rodoviária: milhares de carros e ônibus superlotados formam todos os
dias imensos engarrafamentos. Quando existem outras formas de
transporte, porque receberam investimento inadequado, possuem horário
irregular, são desconfortáveis, lentos, perigosos e não atendem a todos.
Contudo, igualar a periferia ao centro não é uma questão que será
resolvida apenas com meios de transportes públicos eficientes e
acessíveis a todos. O distanciamento da periferia ao centro é,
sobretudo, um distanciamento social. Portanto, o que aproximará as
favelas, as cidades empobrecidas e os bairros degradados dos centros
metropolitanos são políticas sociais e urbanas de diversas naturezas que
possibilitarão o direito e o acesso à cidade, no sentido exato do
termo.
As duas grandes linhas de pensamento da economia, o liberalismo e o planejamento, formam
a base teórica das diferentes formas de governar o País, os estados e
municípios. Se no nível de governança nacional predomina o planejamento
sobre o liberalismo, o mesmo não pode ser dito sobre os principais
estados da federação, suas capitais e grande parte das cidades de suas
regiões metropolitanas.
O planejamento busca regular e redirecionar o poder econômico para
realizar interesses coletivos. O liberalismo buscar estimular segmentos
econômicos para realizar interesses particulares. O planejamento governa
para as pessoas. O liberalismo governa para grupos e segmentos sociais
específicos.
A governança pública dos principais estados e grandes cidades é
liberal, é feita em aliança política e econômica com grandes grupos
econômicos. Muitas intervenções pontuais são realizadas nos espaços
urbanos. Quando têm alcance meramente social são focalizadas, são de
pequeno porte. Quando estão associados aos interesses privados são de
grande porte.
As famílias da classe C, por exemplo, cresceram e foram
economicamente incluídas no mercado de consumo devido às políticas do
governo federal, mas continuam excluídas das cidades que moram. Houve
inclusão social de cunho estritamente econômico. Contudo, inclusão
social plena, e não apenas econômica, só poderá acontecer quando houver
alinhamento de projetos nos três níveis de governo.
As políticas macroeconômicas e sociais do governo federal melhoram a
vida das famílias basicamente dentro das suas casas, já que geram
emprego, renda e concedem benefícios. As políticas do governo federal
são limitadas para realizar a inclusão social das famílias nas cidades. O
governo federal não pode, por exemplo, resolver os problemas dos
transportes urbanos, do ensino médio e da revitalização de bairros e
regiões – e só, parcialmente, pode tentar resolver o problema do acesso à
saúde de qualidade, do saneamento e da moradia.
Em conclusão, a redução das desigualdades sociais para patamares
civilizados somente será possível, portanto, com políticas e projetos
sintonizados dos três níveis de governo, isto é, políticas urbanas devem
ser coerentes com políticas macroeconômicas.
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