Relatos de quem recusa as definições tradicionais de homem-mulher, hétero-homo...
O cartunista Laerte Coutinho, de 60 anos, que em 2009 decidiu passar a
se vestir como mulher, usar brincos e pintar as unhas de vermelho, está
dentro do banheiro masculino quando entra um velhinho. Ao se deparar
com a figura de cabelos grisalhos lisos num corte chanel, saia e salto
alto, em pé diante do mictório, o homem estaca. “Não se preocupe, o
senhor não está no banheiro errado”, diz Laerte. E o idoso, resignado:
“É, eu estou é na idade errada”.
Laerte já foi chamado de crossdresser, denominação utilizada para o homem que gosta de, ocasionalmente, usar roupas femininas como fetiche. Talvez o crossdresser
mais famoso da história tenha sido o cineasta norte-americano Ed Wood,
que vez por outra vestia trajes de mulher. Sentia que lhe acalmavam o
espírito. Wood, encarnado no cinema pelo ator Johnny Depp no filme
homônimo de Tim Burton, em 1994, era casado e, ao que tudo indica,
heterossexual. Só que o cartunista acha que não é crossdresser
como Wood porque não tem mais em seu armário roupas de homem. Nem uma só
cueca, nada. “Foi a primeira gaveta que esvaziei”, conta.
Por outro lado, as travestis, brinca Laerte, ficariam indignadas se
ele dissesse ser uma, por não ter a -exuberância que se espera delas.
Drag queen ele não é, porque não se veste como mulher para fazer
performances. Usa vestidos e saias todo o tempo, para desenhar, pagar
contas no banco ou ir até a esquina. Transexual também não, porque não
tem interesse em fazer cirurgia de mudança de sexo e nem está
insatisfeito com o próprio corpo “biológico”. Bissexual, sim, com
certeza. “Nomenclaturas não me interessam. A busca por uma nomenclatura é
uma tentativa de enquadramento. Sou uma pessoa transgênera e gosto do
termo ‘pós-gênero’”, explica o cartunista.
O fato é que não existe atualmente uma palavra para “enquadrar”
Laerte. Tampouco há resposta definitiva para a questão: quantos gêneros
existem na realidade? Só homem e mulher parecem não ser mais
suficientes. Desde a quinta-feira 15, os australianos terão em seus
passaportes a possibilidade de optar, além dos sexos “masculino” e
“feminino”, por um gênero “indeterminado”. Cabem aí todas as
possibilidades de definição de Laerte, ou qualquer outra que aparecer. A
própria sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) já é
utilizada por alguns grupos como LGBTIQ – adicionada de “intersex” e
“questioning” (“em dúvida” ou “explorando possibilidades”).
Com a mudança no passaporte, a Austrália na prática estende para
todos os cidadãos o direito conquistado na Justiça em março do ano
passado por Norrie May-Welby. Norrie, que nasceu homem, havia feito
cirurgia de sexo para se tornar mulher, mas não se adaptou à nova
condição. Recorreu à Justiça e se tornou a primeira pessoa do mundo a
ser reconhecida como “genderless”, ou sem gênero específico. Após a
decisão, Norrie May-Welby declarou: “Os conceitos de homem e mulher não
cabem em mim, não são a realidade e, se aplicados a mim, são fictícios”.
O sobrenome de Norrie, aliás, é um trocadilho com “may well be”, que em
inglês significa “pode bem ser”.
Leda e os Cisnes, atribuído a Da Vinci
Para chegar à decisão, dois médicos o examinaram e concordaram que
Norrie é psicológica e fisicamente andrógino. May-Welby comemorou a
libertação da “gaiola do gênero” e sua história detonou uma discussão no
país sobre a criação de direitos específicos para as pessoas sem
gênero. Um problema prático é justamente a identificação em documentos
oficiais. Para um homem transexual que fez a cirurgia de mudança de
sexo, é possível em vários países mudar também os documentos. Mas o que
fazer com os que não desejam ser identificados por gênero algum? “O caso
de Norrie evidenciou a existência de pessoas que não desejam ter um
sexo específico”, disse em dezembro John Hatzistergos, procurador-geral
de New South Wales, o estado mais populoso da Austrália.
Nascida mulher, a filósofa espanhola Beatriz Preciado, autora do livro Manifiesto Contrasexual,
uma provocação intelectual que pretende subverter os conceitos de
gênero e sexo é, ela própria, um ser híbrido que recusa qualquer
definição. Preciado não se considera nem homem nem mulher nem
homossexual nem transexual. Perguntada pelo jornal catalão La Vanguardia
sobre seu gênero, Beatriz respondeu: “Esta pergunta reflete uma ansiosa
obsessão ocidental, a de querer reduzir a verdade do sexo a um binômio.
Dedico minha vida a dinamitar esse binômio. Afirmo a multiplicidade
infinita do sexo”. Segundo a filósofa, a sexualidade humana é como os
idiomas: pode-se aprender vários.
Há psicólogos que concordam com Beatriz ao defender que uma coisa é o
gênero e outra, completamente distinta, a atração sexual. Isso é o que
torna possíveis os inúmeros casos relatados de indivíduos que fizeram
cirurgia de mudança de sexo para se tornarem não heterossexuais, mas
homossexuais. Explico: um homem, por exemplo, que se torna mulher não
para ter relações com homens, como se poderia imaginar, mas com
mulheres. Ou seja, que troca de sexo para ser gay.
Aconteceu recentemente na Itália: Alessandro
Bernaroli, de 40 anos, submeteu-se a uma mudança de sexo e tornou-se
Alessandra em 2009, mas ele e a esposa não tinham a intenção de se
separar, queriam permanecer juntos. O mais incrível é que acabaram alvos
de um divórcio à revelia pela Justiça italiana, baseado no fato de o
país não permitir legalmente casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Alessandra está recorrendo no tribunal de última instância e pode ir à
Corte Europeia de Direitos Humanos se o seu direito de permanecer casada
não for reconhecido.
Na Itália, ao virar Alessandra, Alessandro foi obrigado a se separar da mulher
Há três anos, então aos 81, a escritora Jan Morris, que deixara de
ser James através de uma cirurgia em 1972, decidiu casar novamente com
sua companheira de toda a vida, Elizabeth Tuckniss. Eles tiveram cinco
filhos juntos e nunca se separaram de fato, mesmo após a cirurgia. Por
exigências legais, porém, haviam se divorciado logo depois de James se
tornar Jan. James Morris, o primeiro jornalista a anunciar a conquista
do Everest, diz, em seus relatos autobiográficos, que se transformou em
Jan, mas nunca se sentiu homossexual, e sim “erroneamente equipado”.
Achava que deveria ter nascido mulher e fez a cirurgia para corrigir o
equívoco divino – o que não significava que quisesse abrir mão do amor
de Elizabeth.
“Esses casos comprovam que gênero e atração sexual podem ser coisas
Na Austrália, a família sem gênero
separadas. É muito complicado, há pessoas que nunca se conformam em
ser enquadradas em um gênero”, diz o psicólogo Anthony Bogaert,
professor do Departamento de Ciências Sanitárias da Brock- University,
no Canadá. “Gênero é uma construção complexa. Ser macho ou fêmea,
assumir papéis mais femininos ou mais masculinos, não vai
necessariamente indicar que tipo de pessoa atrairá sexualmente um
indivíduo. Homens com características mais -femininas, por exemplo, ou
até transexuais, não necessariamente tenderão a se relacionar com
pessoas do mesmo sexo.”
Apesar das diferenças que estabelece entre gênero e orientação
sexual, Bogaert considera discutíveis experiências como a do casal
canadense Kattie Witterick e David Stocker, que, revelou-se ao mundo em
maio, pretende manter o sexo de seu bebê, chamado apenas de Storm
(tempestade), como um segredo de família. Isso significa que Storm
crescerá sem gênero definido. Acossada por críticas de psicólogos, a mãe
justificou-se dizendo ter tomado a decisão por causa da pressão sofrida
por Jazz, seu filho mais velho, um garoto que gosta de usar tranças e
sempre vestiu roupas de menina, para que “agisse como menino”.
Caso parecido aconteceu há dois anos na Suécia com o bebê “Pop”,
gênero não revelado, que aos 2 anos podia escolher se queria usar
vestidos femininos ou roupas de garoto. “Nós queremos que Pop cresça o
mais livremente possível, queremos evitar que seja forçado/a a assumir
um gênero específico ditado pelo exterior”, explicou a mãe da criança.
“É cruel trazer uma criança ao mundo com uma estampa azul ou cor-de-rosa
pregada na testa.”
Uma pré-escola na Suécia, a Egalia, baniu os termos
“ele ou ela” para se referir aos pequenos alunos, que não são tratados
como “meninos” ou “meninas”, mas como “amiguinhos”. Na brinquedoteca, a
cozinha, com suas panelas e outros utensílios, supostamente “de
predileção” nata das meninas, fica ao lado das peças de Lego e
brinquedos de montar, normalmente “preferidos” pelos meninos, para que
as crianças não tenham “barreiras mentais” e se sintam livres para
escolher entre as duas brincadeiras. O sistema é chamado de “educação
neutra em gênero”, mas já há quem tenha apelidado a ideia de “loucura
dos gêneros”.
O ator Leo Moreira e a espanhola Beatriz (acima) rejeitam o binômio
Foto: Gustavo Lourenção
Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, a
antropóloga Regina Facchini vê, no entanto, alguns aspectos positivos em
não se enfatizarem gêneros e fortalecer estigmas na educação de
crianças. “Em termos individuais, acho impossível criar uma criança sem
gênero. Mas intervir no social, na escola, e não no sujeito, pode ser
interessante.” A pesquisadora lembra que, no Brasil, os parâmetros
curriculares aconselham fazer o possível para não estabelecer diferenças
entre gêneros. Até mesmo em coisas pequenas, mas que denotam
estereótipo, como, por exemplo, dar para os garotos a função “masculina”
de carregar coisas pesadas.
“Existem discussões candentes hoje em dia. Os banheiros das escolas
atendem os alunos transexuais? Agora, a identidade de gênero existe.
Desde o momento que a criança botou a cabeça para fora, ela vai sendo
construída, a partir das expectativas criadas em torno dela pelos pais,
pela sociedade. Essa é uma realidade”, diz a antropóloga. “Sem dúvida,
quanto menos a escola enfatizasse gêneros, menos seria traumático para
algumas crianças. Assim como também seria positivo ensinar que existem
várias formas de masculino e feminino que devem ser respeitadas. O que
existe na maior parte dos lugares é o oposto disso.”
Até os 7 anos, o paulista Leo Moreira Sá, caçula de
nove irmãos, brincava com os amigos no quintal, todos meninos, usando um
short sem camiseta. No dia que ele conta ser o mais chocante de sua
vida, a mãe vestiu-o com o uniforme da escola, uma sainha com blusa. Ele
reclamou: “Mas isso é roupa de menina”. Ela olhou-o profundamente nos
olhos e pronunciou a frase que o marcaria dali por diante: “Você É uma
menina”.
Foram anos de rebeldia, bullying e inadaptação escolar até que Leo,
então Lou Moreira, entrou para as Ciências Sociais da USP e descobriu na
literatura algumas respostas para suas dúvidas. Ainda assim, continuava
a se sentir inadaptada. Entrou para um grupo ativista de lésbicas, mas
não se sentia bem aceita por ser considerada “masculina demais”. O
melhor momento para ela então foi a atuação, nos anos 1980, como
baterista da banda de punk-rock As Mercenárias, look andrógino, cabelo descolorido curtíssimo e ar desafiador.
Em 1995, Lou era casada com uma garota quando viu na rua a travesti
Gabriella Bionda, a Gabi. “Pensei: ‘que mulher linda’”, conta. Gabi
olhou para ela e falou: “Que ‘viadinho’ bonitinho”. Foi o início da
relação surpreendente entre a lésbica e o travesti, que duraria nove
anos e tornaria a dupla figurinha carimbada na noite paulistana. O
curioso é que houve um período que Gabi “montava” Lou para que esta
parecesse mais feminina, mas, nos últimos anos, ela vem se transformando
em Leo. Aos 53 anos, planeja, inclusive, fazer a cirurgia de retirada
dos seios e, futuramente, de mudança de sexo.
Não que tenha decidido se pretende se relacionar amorosamente com
homem, mulher ou outro gênero. “No momento, não estou me relacionando
com ninguém, estou pensando só na cirurgia”, diz Leo, para quem Gabi
ainda é o amor de sua vida. “A Gabi é minha alma gêmea, meu espelho
invertido. Estar com aquela mulher com corpo de homem quebrou certos
limites da minha sexualidade. Na cama, éramos o casal mais versátil que
se possa imaginar. Hoje, desfruto de um leque muito amplo de
possibilidades. Nada está fechado.”
Leo, que toma hormônios, criou barba e possui uma aparência exterior
masculina, rejeita assumir a identidade de homem. Não gosta do termo
“transexual”, mas prefere se nomear assim, à falta de outro. “Adoraria
não precisar assumir gênero algum”, admite o ator, que integra o grupo
de teatro dos Sátyros, em São Paulo, cujas montagens costumam incluir
transexuais e travestis no elenco. “Vivi à margem durante muitos anos.
Agora, ao contrário, essa sensação de não pertencimento ao mundo me faz
feliz, sinto-me um ser humano integral, completo. Vou operar para fazer
um ajuste, para me sentir mais cômodo com meu próprio corpo. Mas assumir
um gênero, para quê?”