Juiz de São Paulo lembra que OEA determinou o
restabelecimento da verdade e exige que se reconheça que militante do
PCdoB foi morto nas dependências do DOI-Codi e sob tortura
São Paulo – O juiz Guilherme Madeira Dezem, do Tribunal de Justiça
(TJ) de São Paulo, é o primeiro no país a reconhecer a sentença da Corte
Interamericana de Direitos Humanos para fundamentar uma sentença sobre
crimes cometidos pela ditadura (1964-85). A decisão é inédita também ao
reconhecer a mudança da causa e do local da morte do militante João
Batista Drumond, assassinado em 1976. Agora, no atestado de óbito, onde
antes se lia “Avenida 9 de Julho” deve constar “DOI-Codi”, um aparelho
de repressão do regime, e onde constava “traumatismo craniano” será
necessário grafar “decorrência de torturas físicas”.
A ação foi apresentada este ano por Maria Ester Cristelli Drumond,
viúva da vítima, que ainda mora com as filhas em Paris, cidade de exílio
durante o regime autoritário. “Mesmo que passados 35 anos do fato, o
que a família objetivamente almeja é que a verdade prevaleça sobre a
mentira. A versão de que estava em fuga e foi atropelado há muito tempo
se sabe que é uma farsa montada pela ditadura”, afirmou, por telefone, o
advogado responsável pela causa, Egmar José de Oliveira. “Para grata
surpresa, o juiz entendeu o pedido e até inovou na decisão com os
argumentos. Porque usa como fundamentação a decisão da Corte
Interamericana.”
Na decisão, o magistrado cita trecho da sentença da Corte, proferida
em 2010, na qual se afirma que o Estado brasileiro falhou na tarefa de
garantir que a Lei de Anistia não significasse empecilho para o
conhecimento da verdade. Com isso, segundo Dezem, estava equivocada a
visão do Ministério Público Estadual de dizer que certidão de óbito não é
“local” para discutir crime ou outros elementos de questionamento
jurídico. “Não se trata de discutir se tortura pode ser incluída como causa mortis ou
não”, discorda o juiz. “Trata-se de reconhecer que, na nova ordem
jurídica, há tribunal cujas decisões o Brasil se obrigou a cumprir e
esta é mais uma destas decisões.”
Este ano, o Ministério Público Federal (MPF) se valeu pela primeira
vez da decisão da Corte Interamericana para apresentar pedidos de
condenação penal de agentes do Estado a serviço da repressão. O caso
mais conhecido é o do coronel da reserva Sebastião Rodrigues de Moura, o
Curió. A Procuradoria no Pará pediu a condenação dele pela morte de
cinco militantes no caso conhecido como Guerrilha do Araguaia, mas a
Justiça Federal rapidamente rejeitou o caso valendo-se da argumentação
de que a Lei da Anistia garante proteção a este tipo de ação.
A recusa se vale de decisão de 2010 do Supremo Tribunal de
interpretar que o dispositivo, aprovado em 1979 pelo Congresso sob
intervenção, é fruto de amplo acordo da sociedade para assegurar a
transição à democracia e, portanto, não pode ser revisto. Oito meses
depois, a Corte Interamericana, reconhecida pelo Brasil e integrante da
Organização dos Estados Americanos (OEA), afirmou que não se deveria
utilizar a legislação como pretexto para deixar de apurar as violações
do passado e garantir a punição de criminosos.
Histórico
Em 1972, João Batista, já na clandestinidade, foi condenado à revelia
a 14 anos de prisão pela Justiça Militar, que tomou como base a Lei de
Segurança Nacional (LSN). Segundo a ação movida pela família, ele,
Haroldo Lima, Aldo Arantes, Renato Rabelo, Ruy Frazão e Rogério Lustosa
decidiram ingressar no PCdoB.
Quatro anos depois, policiais e militares liderados pelo delegado
Sérgio Paranhos Fleury e pelo então comandante do II Exército (sob o
comando do qual funcionava o DOI-Codi), general Dilermando Gomes
Monteiro, invadiram a sede do partido, no bairro da Lapa, em São Paulo, e
comandaram o episódio que ficou conhecido como Chacina da Lapa. Nas
horas seguintes foram presos vários militantes, entre eles João Batista,
que morreu horas depois. A versão do Comando Militar, que forçou a
família a aceitar o atestado de óbito falso, é de que ele "foi
atropelado na fuga – precisamente na Avenida 9 de Julho com Rua Paim”.
A ação observa que houve reconhecimento na Comissão sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos, primeiro, e na Comissão de Anistia, depois, de
que a causa da morte foi a tortura, e, o local, as dependências do
DOI-CODI.
Para o advogado da família, que também é conselheiro da Comissão de
Anistia, a decisão ajuda a criar jurisprudência para futuros processos e
está em sintonia com o atual momento, de abertura da Comissão da
Verdade e de debates na sociedade sobre a necessidade de investigar os
fatos do passado. “Essa decisão abre luzes para o restabelecimento da
verdade e o resgate da memória no nosso país. O juiz soube compreender o
momento histórico que estamos vivendo.”
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