Da Carta Capital
Rodrigo Martins e Willian Vieira
Por dez anos a manicure- Débora Silva Ramos, de 23 anos, subiu e
desceu as ladeiras da Rocinha atrás de uma vida melhor. E aos poucos viu
chegar o asfalto, a iluminação pública, arremedos de saneamento. Mas a
melhora lhe saiu caro. Do casebre de um quarto, banheiro e cozinha
americana voltada para um claustrofóbico corredor, ela e o marido, o
pizzaiolo Fábio de Jesus, de 33 anos, viram o custo de vida na favela
mais famosa do Rio de Janeiro disparar. Em agosto, partiram dali para
viver em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, em uma casa com sala
ampla, cozinha “de verdade” e uma aprazível varanda. Têm agora mais
espaço pelo mesmo aluguel de 300 reais. Com 50 reais de compras, passam a
semana. “Nas biroscas da Rocinha ou nos supermercados da zona sul, o
dinheiro não rendia”, diz Débora. Mas tudo era perto, admite saudosa.
Hoje o marido precisa de duas horas, dois ônibus e um metrô para chegar
ao serviço, quando antes levava meia hora. A casa está 40 quilômetros
mais longe. “O que não dá é morar na zona sul e ter um padrão de vida
incompatível.”
Isso porque o casal saiu antes da ocupação da favela pelas chamadas
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), em novembro. A ação, que já
ocorreu em outros morros da zona sul, tem selado o processo de
transformação das favelas cariocas, que traz, com a mudança da qualidade
de vida, o aumento também do custo de vida. Com a urbanização, fruto de
ações nas três esferas de governo, e a presença das UPPs, o que vem
junto da infraestrutura e da segurança é uma tributação extra e inédita
sobre os moradores. Contas de água, luz e tevê a cabo passam a ser
cobradas. É o fim do gato, meio-termo entre conquista de serviços sem
conquista de direitos. Como parte da população não tem condições de
pagar por esses serviços, com a legalização trazida pela transformação
da favela “em bairro”, eles acabam baixando o nível de vida. Ou deixam a
favela. Ocorre assim uma remoção camuflada, já que as pessoas migram
para locais afastados dos grandes centros.
Uma pesquisa recente da Fundação Getulio Vargas mostrou que o valor
dos aluguéis nas favelas cariocas subiu 6,8% mais que no resto da cidade
desde a implementação das UPPs, em 2008. Segundo Marcelo Neri,
coordenador da pesquisa, esse já seria o chamado “efeito UPP”: o impacto
econômico da paz trazida pela substituição do ritmo do tráfico pelo
papel oficial da polícia. E há o que os especialistas chamam de “efeito
olímpico”: investimentos públicos nas favelas próximas às áreas onde
ocorrerão os jogos trazem uma urbanização mais intensa – e mais aumento
no custo de -vida. O caso é especialmente nítido na Rocinha. O estudo,
que comparou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)
de 2007 e 2009, prevê que a valorização dos aluguéis seja maior
justamente na favela deixada por Débora e Fabrício. Isso devido à
pressão imobiliária. Sem o tráfico, pessoas acostumadas a viver em
bairros convencionais estão dispostas a morar em favelas “pacificadas” e
bem localizadas.
“A conta de luz foi um baque. Todo mundo tinha gato e agora tem de
pagar 80, 100 reais por mês. Quem recebe Bolsa Família tem desconto, mas
é baixo”, reclama Elisete Napoleão, 46 anos, coordenadora do projeto
Corte Arte, que capacita costureiras no Morro do Cantagalo, cravado
entre os abastados bairros de Copacabana e Ipanema. “Muita gente de fora
vem morar aqui, além dos estrangeiros que fazem turismo. O custo das
coisas disparou. No supermercado o preço é o mesmo, não importa se eu
moro na favela ou se sou uma madame da Avenida Atlântica ou da Vieira
Souto.” Elisete entrega-se a um desabafo que explica a ansiedade dos
moradores das favelas com a melhora trazida pela urbanização. “Aos
poucos, desaparecem as opções mais populares, como a Casas da Banha.
Ninguém recebeu ainda o título de propriedade da terra, mas já se fala
em cobrança de IPTU, como se aqui fosse um bairro comum.”
Ao menos para o setor privado, as favelas “pacificadas” têm mesmo
virado bairros comuns. Para a Light, a ocupação policial de comunidades
antes controladas pelo tráfico foi um tônico para os negócios. Sem a
presença de criminosos armados impedindo a atuação dos técnicos, a
empresa conseguiu reduzir em 90% as ligações clandestinas em cinco
favelas com UPPs. Moradores reconhecem que o atendimento melhorou, mas o
custo é elevado e, muitas vezes, inédito. “Quando trabalho na máquina
overloque fico pensando no ‘reloginho’ da luz girando. Ganho mil reais
por mês, mas gasto mais de 100 reais só com a conta de luz”, lamenta a
costureira Sônia Regina Sousa, de 50 anos, nascida e criada no
Cantagalo, mas já assustada com o fantasma que ronda o local: a mudança
forçada pelo bolso. “Tive de cobrar mais dos meus clientes, tudo ficou
mais caro. Não sei se vou aguentar. Minha vizinha já se mudou para
Caxias.”
A retirada do tráfico aumenta a arrecadação privada e, via impostos,
teoricamente, do Estado, o que supriria os gastos com a segurança. Em
tese todos ganhariam, mas nem todos os moradores conseguem pagar o preço
da paz. “Pois, tão logo o morro é ocupado pela polícia, vem uma
avalanche de empresas para acabar com os gatos e vender produtos”, diz o
rapper Mc Fiell, presidente da rádio comunitária do Morro Santa Marta.
Ele vê interesses parti-culares nas intervenções nas favelas. “Surgem
pousadas, hostels e até baladas para a classe média, mas seguimos com
barracos de madeira, esgoto a céu aberto e sem escola. Que morador da
favela tem condições de pagar 50 reais para entrar numa festa?”
Não é falta de investimento público. Segundo o Ministério das
Cidades, só com a primeira etapa do Programa de Aceleração do
Crescimento para intervenções em favelas, 23,5 bilhões de reais terão
chegado a 1,8 milhão de famílias, em ações integradas de construção e
melhora de habitações, saneamento, infraestrutura, equipamentos
públicos, regularização fundiária. Entre 2011 e 2014 devem ser
investidos mais 30,5 bilhões de reais. O governo estima em 1,8 milhão as
famílias atendidas. Só nas favelas do Rio, 210 mil delas foram
beneficiadas por mais de 2,5 bilhões de reais em investimentos. Em São
Paulo, 3,8 bilhões para 230 mil famílias. O governo do Rio também tem
aplicado recursos próprios. Assim que a Rocinha foi ocupada, o
governador Sérgio Cabral anunciou 100 milhões de reais para investir na
urbanização da região, com direito a creche e até elevador.
“A dúvida que fica é se essas melhoras nos morros cariocas vão
beneficiar a população local ou se, ao contrário, vão forçar as famílias
mais pobres a saírem e favorecer quem está chegando agora”, avalia o
ator Babu Fernandes, morador do Vidigal. “O problema é a ausência de um
projeto democrático de cidade. Sobra aos pobres o espaço desprezado pela
lógica imobiliária, sem se levar em conta memória, identidade, espaços
para a diversidade”, afirma Jaílson de Souza e Silva, coordenador do
Observatório das Favelas, para quem tanto a academia quanto a mídia em
geral têm negligenciado o fenômeno da “remoção branca” dos pobres para
as periferias.
Além do encarecimento do custo de vida, muitas famílias estão
ameaçadas de remoção por causa de obras de urbanização das favelas ou
por viverem em áreas de risco. Neste caso, o temor dos moradores é que
eles sejam reassentados em bairros distantes. “Não é segredo para
ninguém que a paisagem dos morros cariocas é espetacular. Moro no topo
do Santa Marta e tenho 180 graus de vista sem interrupção, do Dedo de
Deus ao Corcovado, passando pela Baía de Guanabara. Nunca houve
deslizamento de terra aqui, mas querem nos retirar a qualquer custo”,
afirma o guia de turismo Vítor Lira, de 30 anos.
Ao todo, 52 famílias do Santa Marta receberam ordem de despejo, sem
saber onde serão reassentadas. “Dizem que vão oferecer moradia dentro da
favela, mas nada está certo. Indenização não quero. A mixaria que pagam
não dá nem para comprar um barraco de madeira”, comenta Emílio Marcos
Maximiliano, de 33 anos, que ganha a vida fazendo reparos em quadras de
tênis. Ele vive com a esposa e três filhos num sobrado que tem vista
privilegiada para a Lagoa Rodrigo de Freitas. Não à toa, o custo de vida
aumentou. “Os preços estão inflacionados. Tem muito turista circulando
por aqui, comprando ou alugando casas.”
O aposentado Ivan Cerqueira Nascimento, de 62 anos, há 40 morador do
Cantagalo, confirma a presença dos novos “migrantes” do morro. “Um
americano se dispôs a pagar 3 mil reais de aluguel pela minha casa, para
transformá-la num ponto turístico”, diz. Do terraço vê-se a orla de
Copacabana e Ipanema. Dentro, a casa tem suíte, copa, cozinha, dois
banheiros, área de serviço e um bem cuidado jardim. Casa erguida com o
suor de décadas de labuta como motorista, ela pode em breve estar nas
mãos de outros. “Gostaria de passar o fim da vida aqui, mas com uma
oferta como essa posso levar uma vida confortável em Nova Iguaçu ou
Madureira.” Longe.
Os casos multiplicam-se. Moradores relatam que um banqueiro alemão
teria comprado 70 imóveis no Vidigal. Apesar dos riscos, o austríaco
Andreas Wielend, de 33 anos, decidiu investir 100 mil reais para comprar
e reformar dois sobrados, ora convertidos em hostels (hospedagens de
baixo custo para viajantes) no topo da comunidade. “No réveillon e no
carnaval, tenho 30 hóspedes agendados com meses de antecedência”,
comemora. As diárias nos dormitórios do hostel de estilo rústico custam
de 20 a 30 reais. O aluguel dos quartos particulares varia de 50 a 90
reais por dia. Ele ainda promove festas que reúnem mais de 500 pessoas, o
que fez do lugar uma referência para cariocas de classe média
descolados e ponto de encontro de estrangeiros residentes no Rio. “Se me
oferecessem 400 mil reais pelo meu hostel, não venderia. Meu
investimento teve um retorno de 400% em um ano.”
Um dos hóspedes, o antropólogo americano Jason Scott, de 27 anos,
decidiu passar as férias no Rio de Janeiro. Ficou tão encantado que
resolveu parar suas pesquisas pela Universidade do Colorado e passar um
ano sabático no Brasil. Acaba de alugar uma casa no morro por mil reais
com um amigo. “Escolhi viver no Vidigal porque aqui, além de ter uma
vista maravilhosa, é como uma aldeia, onde todos se conhecem.” Sem
violência e perto de tudo, a favela vira um prato cheio para
estrangeiros. Há um ano no morro, a estudante de relações internacionais
Johanna Hoffman, de 21 anos, não teria condições de viver na zona sul
da cidade se não alugasse uma casa no morro. “Muitos amigos recriminaram
a minha escolha, acham perigoso. Mas nunca tive problemas.”
Na avaliação de urbanistas, a expulsão de famílias pobres para a
periferia das cidades não é consequência apenas do aumento do custo de
vida ou do aquecimento do mercado imobiliário. Deve-se também à
fragilidade das políticas habitacionais. Em novembro de 2011, o
pesquisador Fabrício Leal de Oliveira, do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano e Regional, ligado à UFRJ, apresentou dados
preo-cupantes -sobre a oferta de moradia popular no Rio durante um
seminário. No centro e na zona sul da cidade, praticamente inexistem
opções para famílias que ganham até três salários mínimos, ao passo que o
afastado bairro de Santa Cruz concentrava 62% dos imóveis do programa
Minha Casa Minha Vida para moradores com esse perfil de renda.
“Isso significa que o poder público está estimulando a segregação da
pobreza na periferia, onde não existe cidade. Áreas sem infraestrutura
nem oportunidades de emprego”, afirma Raquel Rolnik, urbanista da
Universidade de São Paulo e relatora especial das Nações Unidas para a
moradia adequada. “Há muitos instrumentos para evitar isso. O governo
pode delimitar áreas de interesse social nos bairros mais bem
localizados, com limites bem definidos do tamanho e do porte das
residências, ou mesmo subsidiar o aluguel das famílias pobres.” A
urbanista lembra que ainda existe uma distribuição relativamente
harmônica entre diferentes classes sociais em todos os bairros cariocas,
mas isso corre o risco de não existir mais. “Ao varrer a pobreza para a
periferia, só agravaremos as tensões sociais e os problemas urbanos,
como o transporte de trabalhadores da periferia para o centro e o
aumento desordenado da -demanda por -escola, -hospitais e demais
serviços públicos em áreas afastadas da cidade. É o mesmo erro que São
Paulo tem cometido historicamente. Estão ‘paulistanizando’ o Rio.”
A comparação da urbanista é pertinente. Há décadas, a capital
paulista tem removido à força favelas para a construção de grandes obras
públicas. As famílias são -reassentadas em bairros cada vez mais
afastados. Uma das poucas comunidades que sobreviveram em uma região
valorizada é a Favela Paraisópolis, localizada ao lado do rico Morumbi.
Mas também lá a valorização imobiliária e o encarecimento do custo de
vida têm imposto obstáculos à permanência de famílias de baixa renda.
Verdade que as mais de 60 mil famílias que lá vivem desfrutam de uma
infraestrutura crescente, com ONGs, escolas, postos de saúde,
bibliotecas, postos de gasolina. Aqui e ali abrem novas clínicas
odontológicas, locadoras, lavanderias, academias de ginástica. A agência
bancária, a imobiliária congestionada, a abarrotada filial das Casas
Bahia, a agência de compras de passagens aéreas por boleto e novas lojas
de varejo surgem a cada dia. Juntos, os empreendimentos dão uma ideia
mais ampla da nova configuração urbana da favela mais valorizada de São
Paulo, onde o metro quadrado em ruas de comércio chega a se equiparar ao
da rica região dos Jardins.
E não são apenas o crescimento da economia e o aumento da classe C os
responsáveis pelo boom. O poder público tem investido pesado na
urbanização da área, cara ao mercado imobiliário, de olho no valioso
entorno. O asfalto já cobre as -ruas principais. Com dinheiro das três
esferas de governo está prevista a construção de 1,6 mil moradias
populares. Parte delas já foi entregue aos moradores.
Mas isso tudo vem com um custo pesado para muita gente. Há cerca de
dois meses, ao discursar na inauguração de um primeiro condomínio, o
governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, prenunciou a transformação da
favela em bairro civilizado. “A urbanização, as moradias novas,
segurança, não tem área de risco, tem escolas, Etec, centro comunitário,
uma cidade, né? Paraisópolis é uma cidade caprichada.” Mas tocou no
ponto nevrálgico: a carestia. “O dinheiro do aluguel é sofrido, né? Eu
perguntava aqui para o José Rolim quanto é um aluguel aqui. Quanto é um
aluguel aqui em Paraisópolis, 300, 400, 500 reais?”
“Por isso, quem tem seu imóvel em Paraisópolis não quer vender porque
está valorizando cada vez mais e a estrutura do bairro, melhorando”,
diz Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores de Paraisópolis.
“Mas o mesmo não vale para quem paga aluguel.” A vice da organização
concorda. “Quem pagava 200 -reais até poucos anos hoje está pagando 500
-reais e ainda periga aumentar”, diz Neusa Vicente. Pois, além do
investimento, há o processo de regularização das terras. Duas mil
famílias receberam o título de propriedade dos imóveis, e logo passaram a
pagar IPTU. “Alguns não conseguem pagar. Eles não estão acostumados com
esse gasto a mais”, diz Rosa Richter, ex-diretora do Conseg do Morumbi.
“Tanto alguns migram para fora do bairro, especialmente os que não
conseguem emprego, quanto muitos migram para dentro do bairro. Com a
urbanização, não falta gente querendo se cadastrar para morar numa das
unidades da prefeitura. E ficam tristes ao saber que elas são somente
para os moradores antigos já cadastrados. E como há empregadas pedindo
pelo amor de Deus para conseguirem um apartamento e morar perto das
patroas.”
O maior fenômeno imobiliário da região assina embaixo. “A gente está
vendo na pele dos outros. Depois que a prefeitura entrou, chegaram
empresas, o aluguel explodiu. Um imóvel com dois cômodos e banheiro, há
cinco anos se alugava por 150 reais. Hoje, alugo por 380”, diz Helena
dos Santos, dona de uma imobiliária em Paraisópolis.
“Em relação à simples remoção, o processo de urbanização já é um
avanço”, diz a urbanista Mariana Fix, especialista em favelização. “Mas,
claro, há modos diferentes de fazer urbanização de favela, desde o que
trabalha apenas com a legalização da terra e colocação dela no mercado
até o que propõe ações habitacionais mais inclusivas.” Não que a
urbanização promovida pelo poder público seja ruim. Há décadas carentes
de investimento, favelas como Rocinha e Paraisópolis anseiam por
melhorias. Mas é preciso olhar com atenção para quem acaba à margem da
panaceia urbanizadora.
“O bairro está uma maravilha”, diz o otimista José Manoel Brizola,
membro do Conselho Gestor de Urbanização de Paraisópolis. “Mas, se a
prefeitura não resolver a falta de moradia, as pessoas que moram aqui há
muito tempo não poderão pagar aluguel, conta de água, com o preço do
jeito que está. Do contrário, cada vez mais pessoas vão abandonar o
bairro.”
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