São Paulo – Duddu Barreto Leite, ou melhor, Luiza Helena Barreto
Leite Valdez, de 80 anos, nasceu numa família de artistas. É filha da
atriz e poetisa Maria Barreto Leite; sobrinha da atriz, professora,
produtora e jornalista Luiza Barreto Leite; prima dos cineastas Luiz
Alberto e Sergio Sanz; e irmã de Vera Barreto Leite, que foi modelo
internacional e é atriz do Teatro Oficina. “Eu sou da segunda geração de
um grupo de intelectuais e artistas”, comemora.
“Eu nasci na ditadura de Getúlio Vargas. Tive um processo democrático
entre o Getúlio e o Getúlio. Passo por uma ascensão democrática, que
foi tão extraordinária que, em menos de dez anos, conseguimos levar o
Brasil a ter uma música exportada para o mundo inteiro, um cinema
ganhando prêmios internacionais e um teatro de Cacilda Becker, que
consegue ser aplaudida em pé em Paris”, destaca. Qualificando o povo
brasileiro de fênix, por renascer das cinzas, ela acrescenta que, nesse
novo momento de democracia, em menos de 15 anos votou-se num operário
para ser presidente do Brasil.
Porém, após se destacar como produtora, diretora e atriz de teatro,
cinema e televisão, Duddu se viu obrigada a abandonar a carreira em
função de perseguição política. “Todas as peças que eu queria encenar
eram cortadas pela censura. O Cesar Vieira transformou um personagem
masculino em feminino da peça ‘O Elevador’ para que eu fizesse. Mesmo
assim, não tendo nada a peça que pudesse ser considerado subversivo, só
pelo fato de ter o nome do Cesar Vieira e de eu estar no elenco, ela foi
perseguida. Então bastava você existir como um ser pensante”, frisa.
Ela foi presa, sendo submetida a interrogatórios durante 4 meses.
Garantindo que lutou e trabalhou muito a vida toda, Duddu Barreto
Leite trabalhou num manicômio judiciário, atuando com teatro aplicado à
recuperação de presos em Piraquara, no Paraná. É autora de um livro
sobre teatro aplicado à educação e planeja escrever outro, “A Outra Fase
da História”, demonstrando como o golpe de 1964 não foi arquitetado
pelo exército, mas por integristas que se infiltraram no exército, com
apoio do governo norte-americano.
Leia a seguir a entrevista completa com Duddu Barreto Leite.
Quais são os reflexos do regime militar no Brasil atual? E nós conseguimos superar todos os fantasmas daquele período?
Toda repressão forma uma geração. As professoras que estão atuando
nos últimos 30 anos foram filhas da ditadura. Elas foram formadas por
professores que serviram à ditadura. Então, evidentemente, essa é uma
consequência muito grande. Todos os professores liberais da época foram
perseguidos, mortos ou colocados fora do país. Nós estamos falando de um
processo que acabou há menos de 30 anos. Então, mesmo as professoras
que sejam liberais na sua sala de ensino têm dificuldades de usar a sua
ação liberal.
Eu tenho uma grande amiga que se formou bem depois disso. Só que ela
está o tempo todo convivendo com diretores e inspetores de alunos que
serviram à ditadura. Então é lógico que isso não acaba num passe de
mágica. Agora nós só conseguimos resistir, porque tínhamos vivido o
processo democrático anteriormente. Então é um fato histórico muito
lento. Tanto nós fomos libertados, que temos hoje como presidente do
país uma GTA (Grupo Tático de Ação), que atuou ativamente no processo de
resistência. Apesar disso, os militares têm a ousadia de fazer uma
festa em pleno 2012, comemorando a dita revolução. Não foi uma
revolução, mas uma usurpação do poder e uma quebra da Constituição
nacional. Tudo isso tem que ser muito bem claro e bem dito.
Quais são as piores e as melhores lembranças desse período?
Não vou falar de tortura, porque é óbvio. Não vou falar de prisão,
porque também é óbvio. Eu vou falar da castração da inteligência
nacional. Isso foi o pior. Em qualquer processo ditatorial, eles
perseguem, matam e torturam, só que esses acabaram com todo o processo
de inteligência nacional. A área científica foi quase toda expulsa do
Brasil. A área intelectual foi perseguida, presa, torturada e morta. A
área da arte foi perseguida e exilada. Então eles destruíram o potencial
da inteligência nacional. E também perseguiram os estudantes que
estavam resistindo e não estavam a favor daquela coisa horrorosa que
estavam implantando nesse país. Eles eram o potencial da inteligência
nacional. Então acabaram com três gerações – a existente, a em formação e
a embrionária.
Vou falar da minha área. Eu fazia teatro, televisão e cinema. Era
produtora, diretora e atriz. Se eu abandonei o teatro, foi por
perseguição por política. Todas as peças que eu queria encenar eram
cortadas pela censura. O Cesar Vieira transformou um personagem
masculino em feminino da peça “O Elevador” para que eu fizesse. Mesmo
assim, não tendo nada a peça que pudesse ser considerado subversivo, só
pelo fato de ter o nome do Cesar Vieira e de eu estar no elenco, ela foi
perseguida. Então bastava você existir como um ser pensante. Para mim,
ter sido presa e nunca ter sido colocada na Tiradentes, mas ter ficado
sobre interrogatório durante 4 meses, era individual. Eu quis resistir.
Eles vinham me atacar e eu sabia disso. O que acho pior é que essa
gente, em nome de uma pátria amada, idolatrada, salve, salve, perseguiu
três gerações da intelectualidade brasileira. Bastava pensar que você
era um inimigo.
Você acha que o teatro foi mais perseguido do que as outras artes e projetos inovadores foram abortados em função da ditadura?
Foram. Mas não só no teatro. No cinema, no circo, em todas as
expressões artísticas. Pintores foram perseguidos. Arquitetos foram
perseguidos. Os cientistas, então, foram dizimados. Eu tenho uma amiga,
que era professora de História, chegaram à sala dela e rasgaram os
livros. Igual a Inquisição. E quando foi contra, ela foi presa. Não era
uma pessoa com visão socialista. Não era nem de movimento de
resistência. Só era uma boa professora de História e não admitia que
fossem rasgados os livros com a História. Então a perseguição foi muito
maior do que aparece na literatura brasileira, porque ela mostra apenas o
corpo de resistência. Aqueles que foram presos, torturados e mortos.
Estou falando das pessoas que não pertenciam ao movimento de resistência
e que foram castrados na sua própria essência. Como se formou um
estudante que não tinha acesso à informação e não tinha professores
libertários? Que estudante é esse? Quem fez isso com eles?
Você acredita que havia uma autocensura muito forte?
Claro. Como é que você forma sua opinião? Através de informação. Se
você não é informado que eu existo, não vai formar nenhuma opinião a meu
respeito. Então vai tomar posições na sua vida de acordo com as
informações que você recebe. Coloca-se uma censura em todos os meios de
comunicação – na escola, na rádio, na televisão, no cinema, no jornal,
na revista e nas igrejas. Então você castra uma geração inteira por 30
anos de informação e quer que o povo que nasça dessa catástrofe tenha
opiniões formadas libertárias?
É um bando de fascistóides que formaram uma geração fascistóide. E
agora estão reclamando do corpo político que está aí? Está aí porque
eles formaram durante anos, castrando os que pensavam e elegendo os que
se vendiam. E agora vêm me falar em corrupção? Como é que nós
sobrevivemos? Como é que os Lulas e as Dilmas ainda sobreviveram?
Sobreviveu, porque estava no movimento de resistência. Estava tomando
pau no meio da rua e saindo do país. Foi assim que a gente resistiu.
Então você há de convir que o mal é muito maior do que aquilo que a
literatura brasileira diz. E essa geração reacionária que hoje
representa o Brasil foi formada por eles.
Tem outro detalhe muito importante que é o seguinte: não foi o
Exército nacional que fez a "revolução" de 64. Quem a fez foram os
integralistas, que tomaram a força de comando no Exército nacional,
porque os maiores mártires de 64 foram todos militares – Carlos Lamarca e
Carlos Marighella. E muitos militares tiveram coragem de ir contra os
integralistas vendidos aos Estados Unidos, pois essa revolução foi
claramente armada e orquestrada pelo governo norte-americano, que
declarou – há vídeo gravado mostrando isso – uma ação contra Cuba na
América Latina. Então, nessa hora, tem que se falar que o exército não
fez a revolução de 64. Aliás, não se pode chamar aquilo de revolução,
mas, sim, de uma tomada de poder.
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