Rio e Porto Alegre: as duas caras da ditadura - Artigo
Do Conversa Afiada
SUL 21 - Luiz Cláudio Cunha
Rio e Porto Alegre: as duas caras da ditadura
Neste fim de semana, o Brasil verá as duas caras da maior tragédia política do país: a mais longa ditadura de sua história.
Na quinta-feira (29), no Rio de
Janeiro, a face da mentira, a cargo dos nostálgicos do regime de força,
vai se mostrar na sede do Clube Militar, na avenida Rio Branco, no
centro da cidade, para festejar o 48° aniversário do que chamam de
“Revolução Democrática e Redentora de 31 de Março de 1964”, a chamada
‘contrarrevolução’ que evitou a ‘comunização’ do país.
A partir de sexta-feira (30), em
Porto Alegre, a face da verdade, escancarada por entidades e militantes
de direitos humanos, será exibida pelos que vão recordar a cara mais
perversa do golpe de 1964, o movimento civil-militar que derrubou o
presidente João Goulart e mergulhou o país numa treva de 21 anos marcada
por violência, prisões, tortura, desaparecimentos forçados, cassações
de mandatos políticos, exílio, censura e medo.
O 5° Encontro Latinoamericano
Memória, Verdade e Justiça, promovido pela Assembleia Legislativa gaúcha
e pelo Movimento de Direitos Humanos e Justiça, vai discutir as
consequências da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos da OEA, as obrigações ainda não cumpridas para adequar a
lei brasileira à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a
imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade, como tortura e
desaparecimento, e o alcance da Comissão da Verdade, criada mas ainda
não instalada no Brasil.
O advento da Comissão da Verdade é
o pano de fundo da inquietação militar, principalmente de setores
militares mais antigos, já na reserva e com suas digitais nos crimes
mais violentos da época da ditadura. Parlamentares, juristas,
jornalistas e entidades de direitos humanos do Cone Sul e da Europa vão
participar do encontro de Porto Alegre, que termina no domingo, 1° de
abril, dia universal da mentira, com uma visita à desativada Ilha do
Presídio, no meio do rio Guaíba, antigo centro de torturas e tormentos
para dissidentes políticos presos pelo DOPS.
O Encontro Latinoamericano
Memória, Verdade e Justiça em março em Porto Alegre é a sequência de
reuniões semelhantes ocorridas em outros países do Cone Sul, sempre na
data de seus respectivos golpes de Estado. O primeiro aconteceu em
Buenos Aires (golpe de 24 de março de 1976), seguido pelos de Montevidéu
(golpe em 27 de junho de 1973) e de Santiago do Chile (golpe em 11 de
setembro de 1973).
A primeira mesa de Porto Alegre,
na sexta-feira, fará um paralelo entre os casos da guerrilha do Araguaia
e do desaparecimento do casal uruguaio Gelman, sequestrado em Buenos
Aires em 1976 por comandos da ditadura de Montevidéu. Nora do mais
famoso poeta vivo argentino Juan Gelman, Maria Cláudia Garcia Gelman foi
presa grávida, deu à luz na prisão, foi torturada, morta e
desaparecida. O bebê, Macarena, foi criado por um casal de policiais da
repressão uruguaia e só veio a ser identificada em 2000, aos 24 anos.
Macarena Gelman fará parte da mesa de debates na Assembléia gaúcha,
nesta sexta-feira.
A neta e o avô entraram com um
processo contra o Uruguai, na Corte de Direitos Humanos da OEA, que
condenou o país pelo sequestro. O Brasil foi condenado também na OEA por
não cumprir a determinação de investigar a repressão no Araguaia e a
punição aos responsáveis por sequestros, torturas e desaparecimentos.
Ao contrário do Uruguai, o Brasil
rejeita a condenação e recusa o cumprimento das decisões legais da Corte
Interamericana, usando o argumento da controversa Lei da Anistia de
1979, concedida pelo próprio regime militar para beneficiar os agentes
de seu aparato repressivo, e a conivente chancela do Supremo Tribunal
Federal, que revalidou a auto-anistia da ditadura em 2010.
Na quarta-feira (21) da semana
passada, o presidente uruguaio José Mujica reconheceu formalmente a
responsabilidade do Estado e pediu desculpas públicas à família, numa
solenidade em que inaugurou uma placa na sede do antigo Serviço de
Informação de Defesa (SID), responsável pelos crimes da ditadura, que
vigorou entre 1973 e 1985.
Mal comparando, é como se a
presidente Dilma Rousseff, como Mujica também uma ex-guerrilheira e
vítima de torturas no regime militar, inaugurasse uma placa parecida na
sede do DOI-CODI da rua Tutoia, em São Paulo, o maior centro da
repressão militar do país nos anos de chumbo do Governo Médici.
É possível imaginar, assim, a pequenez institucional do gigantesco Brasil diante da grandeza política do pequeno Uruguai.
A simples ameaça de uma Comissão
da Verdade no Brasil, o último país no mundo a adotar a medida, provocou
tensão na área militar. Os clubes militares das três armas publicaram
um manifesto em seus sites, antes do Carnaval, e os ataques à futura
comissão viraram cinza na quarta-feira em que as cuícas silenciaram,
diante da dura voz de comando da presidente Dilma.
Inconformados, militares da
reserva se reaglutinaram em torno de um novo manifesto, ainda mais
ameaçador, atacando a autoridade da presidente e de seu ministro da
Defesa, Celso Amorim. A ultima contagem dos rebelados informava uma
lista de adesões com 126 oficiais-generais da reserva (entre generais,
almirantes e brigadeiros), 786 coronéis e 202 tenentes-coronéis.
A reação empolgada da direita
militar, saudosista do golpe, provocou uma reação contrária nas ruas. Na
mesma quinta-feira em que o Clube Militar realizará sua acintosa
reunião festiva, contrariando ordem expressa da presidente Dilma
Rousseff, um ato de apoio à Comissão da Verdade será realizado na
tradicional Cinelândia, no centro do Rio, bem próximo ao clube dos
nostálgicos de 1964.
Os manifestantes, bem humorados,
prometem comparecer vestidos de pijama, como os militares da reserva que
tentam, agora, voltar à linha de frente da cena política defendendo o
regime de força que sustentaram por duas décadas. Na terça-feira, em
várias capitais, grupos de estudantes fizeram manifestações pontuais
indicando o local de endereço de vários militares e policiais, apontados
como torturadores do regime e até hoje impunes.
A exacerbação do debate em torno
de quem defende ou critica a Comissão da Verdade pode ser um elemento
positivo para tirar a questão dos gabinetes ainda tímidos do poder e
ganhar o calor das ruas e da mobilização popular. É a única maneira de
tratar, com o devido respeito, uma questão que o Congresso Nacional e o
Supremo Tribunal Federal ainda temem colocar em pauta.
O encontro latinoamericano de
Porto Alegre mostra que esta não é uma questão exclusivamente doméstica
do Brasil, mas uma demanda internacional para quem reverencia a justiça,
a memória e a história.
A verdade, ao contrário da mentira, não se fantasia com pijamas.
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