quinta-feira, 1 de março de 2012

Recall de políticos

Do Sem Fronteiras

Leinin e o recall
Lenin e o recall

A Lei da Ficha Limpa aprimorou as condições de elegibilidade. Falta-nos, como titulares do poder, remédio eficaz e democrático para mandar de volta para casa  o representante que escapa das obrigações assumidas quando recebeu o mandato popular. No direito constitucional esse remédio chama-se recall e deve ser aplicado a vereadores, prefeitos, deputados, governadores e senadores.

Para a revista CartaCapital que está nas bancas escrevi sobre o recall, uma das lutas que perdi na elaboração da Constituição de 1988. Fiz várias palestras e exposições. Até no Instituto Roberto Simonsen, da Fiesp. A derrota foi fragorosa, pois o tema nunca empolgou os constituintes. Nem o ministro Jobim, aquele que, em livro, confessou ter colocado na Constituição artigos que não passaram pelo exame e aprovação dos constituintes.

A  Lei da Ficha Limpa, de iniciativa de 1,3 milhão de eleitores, cuja legitimidade constitucional acabou de ser reconhecida no Supremo Tribunal Federal (STF) por 7 votos a 4, mostra como os cidadãos podem interferir de maneira positiva no aperfeiçoamento do sistema democrático. Essa iniciativa cidadã em pouco tempo recebeu firme adesão da opinião pública esclarecida.

Agora parece ter chegado a hora da mobilização para se implantar o recall, mecanismo apto a cassar, por iniciativa popular, aquele que trai a confiança do eleitorado. Em passado recente, o eleitorado californiano democrata deu “cartão vermelho” ao governador Gray Davis. Para os eleitores, Davis não cumpriu as promessas de campanha. Uma lista com assinaturas dos eleitores democratas insatisfeitos, que atingiu o número legal, levou à consulta (recall) e, pelo voto, o governador acabou defenestrado. Depois disso, abriu-se um processo eleitoral. O vencedor foi o republicano Arnold Schwarzenegger.

Sobre o recall, Lenin influenciou a sua adoção na Hungria, Romênia, Polônia, União Soviética, antiga Alemanha Oriental e na então Tchecoslováquia. Para o líder russo, num escrito publicado no jornal Iskra durante seu exílio suíço, “um país não é democrático se o eleitor não contar com um instrumento para retomar o mandato concedido ao eleito”. O recall, frise-se, é empregado nos cantões suíços e apresenta-se útil para retomar mandatos de “vereadores” e dos administradores (prefeitos) cantonais. Foi na Suíça que Lenin descobriu o recall eleitoral.

Durante o julgamento da Ficha Limpa, o ministro Gilmar Mendes demonizou a força da opinião pública, isso depois da surpreendente mudança de tese do ministro Marco Aurélio Mello, atribuível ao seu desgaste no julgamento sobre a competência correcional do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e na atuação jurisdicional, pois, conforme levantamento do jurista Joaquim Falcão, Marco Aurélio é vencido em mais de 70% dos julgamentos sobre constitucionalidade.

Para Gilmar Mendes, “essa tal opinião pública é a mesma que elege os candidatos ficha suja”. Nada mais equivocado, pois a opinião pública não engoliu os ficha suja e exigiu novas condições de elegibilidade. O mais forte dos argumentos levantados para se declarar a inconstitucionalidade da Ficha Limpa referia-se a um princípio jamais acolhido pelas constituições brasileiras democráticas. Nunca acolhido, mas sempre proclamado quando convém a potentes, poderosos, coronéis e seus jagunços. No Brasil democrático, vigorou sempre o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade. Jamais o chamado princípio da presunção da inocência. Não seguimos o modelo francês, que nem lá conta com a interpretação dada por alguns ministros do STF.

Atenção: se todos fossem presumidamente inocentes, não se poderia decretar a prisão preventiva, cautela necessária e cuja imposição se dá antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Muitas vezes, até na fase de inquérito policial. Pergunta-se: em algum momento, o STF invocou a presunção de inocência para acabar com a prisão preventiva no País? O que se viu — e os casos Salvatore Cacciola, Daniel Dantas e Roger Abdelmassih são emblemáticos — foram contorcionismos e errôneas avaliações de Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes para soltá-los.

Não se deve esquecer que na França prisões preventivas são decretadas e ninguém cogita de afronta à presunção de inocência. Para ficar claro que o constituinte brasileiro adotou o modelo italiano da presunção de não culpabilidade, em que se nega a culpa mas não se afirma a inocência, um simples cotejo de textos espanta as dúvidas e seria recomendável aos Toffoli da vida: “L’imputato non è considerato colpevole” (Constituição da Itália). “Ninguém será considerado culpado” (Constituição do Brasil). “Tout homme étant presume innocent” (Constituição da França). Ao citar autores italianos de nomeada, o jurista Hélio Tornaghi não cansava de ensinar: “Afirmou-se apenas que só depois da sentença condenatória final é que se pode falar em culpado… Declarando que o acusado não é considerado culpável, a Constituição não afirma a presunção de inocência, limitou-se a negar a culpa”.

A opinião pública, e não se perde por esperar, deve pressionar para se estabelecer mandato por prazo certo e improrrogável para ministros do STF, com outros mecanismos de escolha e controle correcional sobre eles pelo CNJ, que deve se transformar em órgão real de controle externo. O recall também vai chegar, sempre para aperfeiçoar e aproximar o representante dos seus representados. A propósito, na vida civil, uma procuração (contrato de mandato) pode, conforme estabelece o Código Civil, ser rescindida quando o mandante perde a confiança no mandatário-procurador. Quem viver verá.

Wálter Fanganiello Maierovitch

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