A Lei da Ficha Limpa aprimorou as condições de elegibilidade.
Falta-nos, como titulares do poder, remédio eficaz e democrático para
mandar de volta para casa o representante que escapa das obrigações
assumidas quando recebeu o mandato popular. No direito constitucional
esse remédio chama-se recall e deve ser aplicado a vereadores,
prefeitos, deputados, governadores e senadores.
Para a revista CartaCapital que está nas bancas
escrevi sobre o recall, uma das lutas que perdi na elaboração da
Constituição de 1988. Fiz várias palestras e exposições. Até no
Instituto Roberto Simonsen, da Fiesp. A derrota foi fragorosa, pois o
tema nunca empolgou os constituintes. Nem o ministro Jobim, aquele que,
em livro, confessou ter colocado na Constituição artigos que não
passaram pelo exame e aprovação dos constituintes.
A Lei da Ficha Limpa, de iniciativa de 1,3 milhão de eleitores, cuja
legitimidade constitucional acabou de ser reconhecida no Supremo
Tribunal Federal (STF) por 7 votos a 4, mostra como os cidadãos podem
interferir de maneira positiva no aperfeiçoamento do sistema
democrático. Essa iniciativa cidadã em pouco tempo recebeu firme adesão
da opinião pública esclarecida.
Agora parece ter chegado a hora da mobilização para se implantar o
recall, mecanismo apto a cassar, por iniciativa popular, aquele que trai
a confiança do eleitorado. Em passado recente, o eleitorado
californiano democrata deu “cartão vermelho” ao governador Gray Davis.
Para os eleitores, Davis não cumpriu as promessas de campanha. Uma lista
com assinaturas dos eleitores democratas insatisfeitos, que atingiu o
número legal, levou à consulta (recall) e, pelo voto, o governador
acabou defenestrado. Depois disso, abriu-se um processo eleitoral. O
vencedor foi o republicano Arnold Schwarzenegger.
Sobre o recall, Lenin influenciou a sua adoção na Hungria, Romênia,
Polônia, União Soviética, antiga Alemanha Oriental e na então
Tchecoslováquia. Para o líder russo, num escrito publicado no jornal Iskra
durante seu exílio suíço, “um país não é democrático se o eleitor não
contar com um instrumento para retomar o mandato concedido ao eleito”. O
recall, frise-se, é empregado nos cantões suíços e apresenta-se útil
para retomar mandatos de “vereadores” e dos administradores (prefeitos)
cantonais. Foi na Suíça que Lenin descobriu o recall eleitoral.
Durante o julgamento da Ficha Limpa, o ministro Gilmar Mendes
demonizou a força da opinião pública, isso depois da surpreendente
mudança de tese do ministro Marco Aurélio Mello, atribuível ao seu
desgaste no julgamento sobre a competência correcional do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e na atuação jurisdicional, pois, conforme
levantamento do jurista Joaquim Falcão, Marco Aurélio é vencido em mais
de 70% dos julgamentos sobre constitucionalidade.
Para Gilmar Mendes, “essa tal opinião pública é a mesma que elege os
candidatos ficha suja”. Nada mais equivocado, pois a opinião pública não
engoliu os ficha suja e exigiu novas condições de elegibilidade. O mais
forte dos argumentos levantados para se declarar a
inconstitucionalidade da Ficha Limpa referia-se a um princípio jamais
acolhido pelas constituições brasileiras democráticas. Nunca acolhido,
mas sempre proclamado quando convém a potentes, poderosos, coronéis e
seus jagunços. No Brasil democrático, vigorou sempre o princípio
constitucional da presunção de não culpabilidade. Jamais o chamado
princípio da presunção da inocência. Não seguimos o modelo francês, que
nem lá conta com a interpretação dada por alguns ministros do STF.
Atenção: se todos fossem presumidamente inocentes, não se poderia
decretar a prisão preventiva, cautela necessária e cuja imposição se dá
antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Muitas vezes, até
na fase de inquérito policial. Pergunta-se: em algum momento, o STF
invocou a presunção de inocência para acabar com a prisão preventiva no
País? O que se viu — e os casos Salvatore Cacciola, Daniel Dantas e
Roger Abdelmassih são emblemáticos — foram contorcionismos e errôneas
avaliações de Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes para soltá-los.
Não se deve esquecer que na França prisões preventivas são decretadas
e ninguém cogita de afronta à presunção de inocência. Para ficar claro
que o constituinte brasileiro adotou o modelo italiano da presunção de
não culpabilidade, em que se nega a culpa mas não se afirma a inocência,
um simples cotejo de textos espanta as dúvidas e seria recomendável aos
Toffoli da vida: “L’imputato non è considerato colpevole” (Constituição
da Itália). “Ninguém será considerado culpado” (Constituição do
Brasil). “Tout homme étant presume innocent” (Constituição da França).
Ao citar autores italianos de nomeada, o jurista Hélio Tornaghi não
cansava de ensinar: “Afirmou-se apenas que só depois da sentença
condenatória final é que se pode falar em culpado… Declarando que o
acusado não é considerado culpável, a Constituição não afirma a
presunção de inocência, limitou-se a negar a culpa”.
A opinião pública, e não se perde por esperar, deve pressionar para
se estabelecer mandato por prazo certo e improrrogável para ministros do
STF, com outros mecanismos de escolha e controle correcional sobre eles
pelo CNJ, que deve se transformar em órgão real de controle externo. O
recall também vai chegar, sempre para aperfeiçoar e aproximar o
representante dos seus representados. A propósito, na vida civil, uma
procuração (contrato de mandato) pode, conforme estabelece o Código
Civil, ser rescindida quando o mandante perde a confiança no
mandatário-procurador. Quem viver verá.
Wálter Fanganiello Maierovitch
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