segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Crônica de Um Assassinato Gradual

Brasília Confidencial No 325

AYRTON CENTENO

Naquele 13 de março, João Goulart queixou-se da teia de “terror ideológico” tecida pelos seus adversários: “Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas”, desabafou o presidente perante 200.000 pessoas, no comício da Central do Brasil.
 
E prosseguiu: “A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia anti-povo, do anti-sindicato, da  anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou  representam”.
 
Quarenta e seis anos depois, suas palavras reverberam notável frescor, como se estivessem pairando agora nas ruas do velho Rio.
 
“A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobras; é a democracia dos  monopólios privados, nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício”.
 
Naquela noite dos idos de março de 1964 moviam-se estrelas da política e muitos coadjuvantes. Um deles, um jovem de 22 anos. Presidente da União Nacional dos Estudantes, a UNE, também discursou, dedo em riste, intenso. Tinha algumas divergências com o governo, mas frequentava o mesmo palanque.
 
Dezoito dias depois, o vaticínio de Jango – “Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas” - consubstanciou-se sob a forma de tanques, fuzis e metralhadoras. Golpeado, o governo  constitucional se desfez e alimentou a diáspora dos seus protagonistas, coadjuvantes ou periféricos. O rapaz  escondeu-se durante alguns dias, a sede da UNE foi incendiada e ele também saiu do Brasil.
 
Em meio à marcha para o exílio, a imprensa que, dez anos antes, conspirara contra Getúlio Vargas, tocava seu bumbo: “Vive a Nação dias gloriosos”, festejou o editorial de O Globo no dia 2 de abril. E emendou: “Porque souberam unir-se todos os patriotas (...) para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a  ordem.”
 
A democracia, como se sabe, continuaria sendo salva nas duas décadas seguintes. Com a ajuda de O Globo e seus iguais.
 
O fogo cerrado da mídia contra os governos Vargas e Goulart municiara com novos termos o arsenal  retórico de certa classe média temerosa do avanço do trabalhismo: mar de lama, petebo-comunismo e  república sindicalista, entre muitos. Este último extraído de uma fraude. Em 1955, Carlos Lacerda denunciou em seu diário, a Tribuna da Imprensa, a urdidura de uma “república sindicalista” no Brasil. Prova disso seria  a carta remetida pelo deputado peronista Antonio Brandi ao ministro do Trabalho, João Goulart. A “Carta  Brandi” tratava de contrabando de armas para transformar o país na citada república. Era uma falcatrua,  como o próprio Lacerda viria a saber. Nos quartéis, porém, a “Carta Brandi” aguçou a inquietação ao  disseminar a patranha de que os sindicatos estavam prestes, como se fossem um exército, a tomar o poder.  
 
Em 1964, a expressão foi recuperada para dar fôlego à idéia da revolução iminente.
 
Passaram-se mais de quatro décadas até os ouvidos militares captarem novamente a expressão “república sindicalista”. Aconteceu no Clube da Aeronáutica, semana passada. Quando, aliás, comunicou-se que a  “república sindicalista” já foi implantada, como “uma operação militar”. Restou por esclarecer o objetivo  deste ritual de sedução que une porções iguais de arcaísmo e irresponsabilidade. Que jogo exatamente  começou a ser jogado? Não se sabe. O que se sabe é que a informação foi dada durante palestra, a portas  fechadas, por exigência do palestrante. Ignora-se se houve alguma menção à Carta Brandi. É provável que  não. Desta vez a impostura não estava contida na carta e sim no portador.
 
Afirma-se que quem soprou a pluma nos ares da caserna foi o jovem de 22 anos que discursou no palanque de Jango, Brizola e Arraes. Não acredite. Ele está morto. Morreu assassinado, aos poucos, como muita gente morre quase sem perceber, sem velório ou caixão.
 
Apenas casca, desprovido da antiga substância, continuou andando e não se notou sua partida. Se vivo  estivesse, não teria palavras apropriadas para se dirigir ao orador. Teria somente asco.

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