Da Carta Capital
Hoje, ela fala em 85 bilhões de reais anuais, como
se pode ver na capa da principal revista da direita nativa. Ontem, eram
70 bilhões. Amanhã, sabe-se lá. E não importa. O relevante é trombetear
uma cifra que impressione, qualquer que ela seja.
Marcos Coimbra
Protestos
Em uma das passagens mais conhecidas de Alice no País das Maravilhas,
a heroína entabula um diálogo com a Falsa Tartaruga, um ser
melancólico, sempre triste por ter deixado de ser uma tartaruga de
verdade.
A alturas tantas, a tartaruga relembra os dias na escola e as
matérias que estudara: “Reler e escrevinhar, é claro (…) e os diferentes
ramos da aritmética: Ambição, Distração, Enfeiamento e Escárnio”.
Quando a menina lhe pede que explique o que quer dizer o terceiro, ela
responde: “Você sabe o que é embelezar, imagino (…) então você sabe o
que é enfeiar”.
A mídia conservadora brasileira é uma espécie de Falsa Tartaruga. Ela
não hesita no emprego de sua peculiar aritmética de enfeiar, confundir e
escarnecer.
Sua proeza mais recente é a fabricação de uma conta sobre o tamanho
da corrupção no Brasil, seguida de sua difusão maciça. Faz como ensinava
um famoso propagandista alemão: para transformar uma mentira em
verdade, é preciso repeti-la mil vezes.
A mídia conservadora pega o número e o põe nas manchetes, na boca de
comentaristas televisivos, em suas “análises”. Ficam todos compungidos
com o tamanho do pro-blema. Como se não fosse ela mesma que lhe deu a
dimensão que tanto a assusta.
Tudo começou com a divulgação de um estudo do Departamento de
Competitividade e Tecnologia da Fiesp, que tinha a intenção de estimar
os “custos econômicos da corrupção” no Brasil. Como passou a ser
referência, vale a pena entender o que fizeram seus autores.
Seu ponto de partida foi usar de forma questionável algo banal, os
estudos sobre percepção de corrupção, que perguntam a determinado
público se acha que ela existe e se seria grande ou pequena. Como as
respostas decorrem de impressões, o resultado, óbvio, é subjetivo.
Se, por exemplo, a mídia estiver falando muito do assunto, os
entrevistados podem imaginar que a corrupção aumentou, sem que tenha
crescido um só milímetro objetivamente. Vice-versa, podem achar que
diminui enquanto cresce.
O que o estudo da Fiesp fez de mais condenável foi usar uma medida de
percepção da corrupção para inferir seu custo real. Inovaram, fazendo
algo que, mundo afora, ninguém faz.
Um problema adicional da metodologia é a fragilidade de suas bases de
dados. Para chegar à “corrupção percebida”, a fonte são avaliações de
técnicos -estrangeiros (vinculados, tipicamente, a empresas de cálculo
de risco), somadas a alguns poucos e modestos estudos com empresários
brasileiros. Exemplificando: o Fórum Econômico Mundial faz, em média, 98
entrevistas por país; o Institute for Management Development, 83.
Qualquer um vê que seu tamanho é insuficiente.
São pesquisas que usam questionários autorrespondidos, o que as
complica ainda mais. Quando a Transparência Brasil quis fazer algo
parecido, convidou 4 mil empresas, mas obteve apenas 76 respostas. Como
imaginar que essas 0,019% sejam representativas, se foram só elas que
quiseram participar?
Os técnicos da Fiesp utilizaram o Índice de Percepção da Corrupção
(IPC), calcula-do pela Transparência Internacional para 180 países, e
resolveram inventar (verificaram que o Brasil melhorou de 1996 para
2009, mas preferiram deixar isso de lado).
O IPC brasileiro, em 2009, era 3,7 (em uma escala que chega a 10, que
significa zero de corrupção percebida). E se nosso índice fosse maior,
se a percepção fosse menor?
Mas quanto? Talvez achando que suas especulações pareceriam mais
“científicas”, escolheram 12 países a esmo para calcular seu IPC médio.
Ficaram, sabe-se lá por que, com Coreia do Sul, Costa Rica, Japão,
Chile, Espanha, Irlanda, Estados Unidos, Alemanha, Austrália, Canadá,
Cingapura e Finlândia.
Se a corrupção percebida no Brasil fosse igual (por
alguma razão misteriosa) à média desses países, nosso IPC iria para
7,45. E daí? Iria para menos se substituíssemos a Finlândia pela
Holanda, “mais corrupta”. Para mais, se trocássemos a Espanha pela
Eslovênia, “menos corrupta”. E daí?
Daí vem a prestidigitação do estudo da Fiesp. Tomaram um modelo
neoclássico de crescimento econômico e resolveram torná-lo “sensível ao
índice de percepção da corrupção”. Para isso se deram ao direito de
modificar o modelo (sem dizer como) para “incluir os efeitos da
corrupção sobre o crescimento de longo prazo do produto per capita”
(embora continuassem a falar, somente, de percepções).
Se, então, nosso IPC fosse 7,45 e se o modelo que inventaram fosse
verdadeiro, o produto per capita brasileiro seria 1,36% maior ao ano,
entre 1990 e 2008. Como o IPC real é menor, teria havido, nessa lógica
estranha, um “prejuízo” (o “custo da corrupção”) de 41,5 bilhões de
reais anuais.
E se o IPC brasileiro fosse 10? Se ne-nhum dos empresários ouvidos
achasse que há qualquer tipo de corrupção no Brasil? Se fôssemos o único
país do mundo com esse índice (melhor que o da Dinamarca, o “menos
corrupto”)?
Aí o “prejuízo” de ter o IPC de 3,7 seria maior. Chegaria a 69,1
bilhões de reais anuais (a preços de 2008), que nossa mídia arredondou
para 70 bilhões.
E assim se explicam os números que andam por aí: pesquisas limitadas,
metodologias discutíveis, inferências sem fundamento. Eles não dizem
simplesmente nada.
Se alguém quiser um exemplo melhor da aritmética da Falsa Tartaruga,
vai ter trabalho. Faz tempo que não vemos uma discussão tão sem pé nem
cabeça. •
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