Da Rede Brasil Atual
Por: Cida de Oliveira
O diabetes, a pressão alta, o excesso de peso e os cinco comprimidos
que toma várias vezes ao dia para controlar a circulação e o açúcar no
sangue não desanimam Rosilei Conceição de Melo. Aos 41 anos, ela não
para. Trabalha diariamente na Prefeitura de São Paulo como auxiliar de
enfermagem, é professora voluntária na rede de cursos pré-vestibulares
Educafro, faz especialização em História da África e do Negro no Brasil e
ainda um curso sobre a descolonização do continente africano. “Vida de
preto não é fácil”, diz. Tanta atividade é uma compensação para
recuperar os 25 anos que passou longe da sala de aula para ajudar no
sustento da família. Sem contar o tempo para enfrentar o ceratocone, uma
alteração na córnea, que exigiu transplante.
Com bolsa parcial do ProUni, formou-se em História aos 40 anos. O
mestrado e doutorado estão nos planos. “Meu objetivo é contribuir para a
conscientização do negro quanto à injustiça social da qual é vítima há
tanto tempo”, explica Rosilei. Para ela, o caminho é seu trabalho
voluntário e as aulas que pleiteia na escola pública, na periferia, onde
acredita ser mais necessária.
Rosilei sente na pele o tratamento diferenciado até mesmo nos postos
de saúde, que devem acolher com a equidade pressuposta pelo Sistema
Único de Saúde. Tal discriminação reflete o racismo institucional
praticado nas estruturas públicas e privadas e nos meios de comunicação
brasileiros. Depois de pressões do movimento negro, em 2006 o Ministério
da Saúde reconheceu a existência da desigualdade étnico-racial na rede
pública, ponto de partida para a Política¬ Nacional de Saúde Integral da
População Negra (PNSIPN).
Aprovada no mesmo ano pelo Conselho Nacional de Saúde, foi convertida
em lei pelo Estatuto da Igualdade Racial em 2010, que entre outros
direitos visa a ampliar o acesso dessa população aos serviços de saúde e
incluir o tema na formação e educação permanente dos profissionais da
área.
É
o racismo institucional que explica, por exemplo, por que a taxa de
mortalidade materna é duas vezes maior entre as afrodescendentes. Ou por
que a contaminação pelo HIV é também maior entre elas do que entre as
brancas. “Os negros, quase 70% dos usuários do SUS, têm menor acesso e
pior qualidade no atendimento. Os melhores equipamentos de saúde estão
longe dos locais onde eles são maioria. E o racismo ainda dificulta a
relação médico-paciente e compromete o tratamento”, aponta Mônica de
Oliveira, gerente de projetos da Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir), da Presidência da República.
Segundo Mônica, pesquisas mostram isso na prática. “No parto, só
metade das negras recebe anestesia. Os profissionais de saúde têm a
ideia equivocada de que elas são mais resistentes a dor. O pré-natal,
dificultado pela frequente falta de recursos para o transporte, é feito
de maneira superficial porque muitos médicos têm nojo do corpo negro, o
que desestimula muitas a continuar o acompanhamento”, relata, destacando
ainda inúmeros casos de eclâmpsia nessa população, devido a uma
suscetibilidade maior a pressão alta. Um dos resultados, como ela
lembra, é o alto índice de mortalidade de mulheres na gravidez, no parto
ou logo após. A redução das taxas de mortalidade materna, aliás, é o
único dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, da Organização das
Nações Unidas, que o Brasil não conseguirá atingir até 2015.
Tratamento desigual
Uma pesquisa nacional sobre discriminação racial e preconceito, feita
em 2003 pela Fundação Perseu Abramo, revelou que 3% da população
brasileira já se sentiu discriminada nos serviços de saúde. Entre as
pessoas negras, 68% o foram no hospital, 26% nos postos de saúde e 6% em
outros serviços. Em sua maioria, o agente discriminador foi o médico. E
outro estudo, de 2004, ouviu usuários do serviço público de saúde no
município do Rio de Janeiro. Os negros entrevistados relataram com maior
frequência o tratamento desigual por parte do médico, de recepcionistas
e de enfermeiros.
Por causa do preconceito e da desinformação, muitos creem que os
negros são mais fortes, têm a pele mais resistente a rugas e a flacidez e
os dentes perfeitos, que dispensam maiores cuidados. Na verdade, eles
adoecem muito mais e morrem mais cedo. “As razões são biopsicossociais. O
racismo leva a outras consequências, à violência psicológica,
transtornos mentais, alcoolismo, doenças sexualmente transmissíveis,
Aids, doenças relacionadas ao trabalho”, enumera a psicóloga Michely
Ribeiro da Silva, articuladora da Mobilização Nacional Pró-Saúde da
População Negra em Curitiba.
Liderada pela Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População
Negra, em parceria com outras entidades do setor, a mobilização visa a
despertar a sociedade para reconhecer e enfrentar o racismo, a
discriminação e as desigualdades raciais que restringem o exercício do
direito humano à saúde.
A agenda deste ano, que segue até 20 de novembro, Dia Nacional da
Consciência Negra, tem como slogan “Saúde da população negra é direito, é
lei: racismo e discriminação fazem mal à saúde”. Em todo o país,
gestores, profissionais de saúde e lideranças comunitárias estão
debatendo ações para combater o racismo institucional no SUS e implantar
a PNSIPN nos estados e municípios.
No
último 27 de outubro, a Seppir e o Ministério da Saúde assinaram um
protocolo de intenções para começar a tirar do papel a Política Nacional
de Saúde Integral da População Negra. A luta é grande. “Enquanto há
leis para reduzir acidentes de trânsito, que vitimam mais os jovens
brancos, quase nada é feito para diminuir homicídios, principal causa de
morte entre jovens negros. O que existe ainda está no papel”, afirma
Michely.
Bandeira antiga do movimento negro, a saúde começou a avançar em
1996, quando, devido a pressões do setor, o quesito raça/cor foi
incluído nos formulários de Declaração de Nascidos Vivos e de Declaração
de Óbitos. A partir de então, foi possível quantificar e qualificar a
mortalidade por grupos populacionais. “Esses dados são fundamentais para
orientar ações específicas de autoridades de saúde na criação de
políticas públicas e de laboratórios, na produção e testes de
medicamentos que atendam às necessidades dessa população”, aponta o
sociólogo Luís Eduardo Batista, pesquisador do Instituto de Saúde (IS),
ligado à Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo. “Estamos apenas no
começo de uma série de desafios que temos pela frente.”
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