Da Rede Brasil Atual
Lama começa a aparecer
O desmando do governo tucano na Assembleia Legislativa de São Paulo é posto em xeque
Por: Raoni Scandiuzzi
A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) tem 94
deputados, 3.000 funcionários e orçamento anual de R$ 660 milhões.
Desfruta da conveniência da imprensa comercial – que costuma se indignar
com denúncias de Brasília e blindar o governo paulista. A maioria dos
parlamentares submete-se em silêncio ao comando do Palácio dos
Bandeirantes, onde, desde 1995, a morada do chefe do Executivo é também
um ninho tucano. Em troca de investimentos e apoios aos seus interesses
eleitorais, deputados da base aliada mantêm o governador do estado livre
de qualquer dor de cabeça.
A responsabilidade da Alesp não é pequena. Lá se discute e aprova o
Orçamento do estado – R$ 140 bilhões em 2011 – e se deve fiscalizar sua
correta aplicação. É onde são tratadas leis importantes para a
sociedade, desde uma que poderia proibir a venda de porcarias de alto
teor calórico em cantinas de escolas públicas até outras que autorizaram
o governo a vender o patrimônio estratégico – como do setor elétrico,
do Banespa e da Nossa Caixa, a concessão de estradas e ferrovias. É lá
também que a transparência da gestão pública deveria ser garantida,
porém é onde o governo sabe que denúncias e pedidos de instalação de
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) serão varridos para baixo do
tapete.
O domínio do Executivo na Casa combina as indicações a cargos
públicos, o compartilhamento do poder regional e a administração da
liberação de recursos provenientes das emendas parlamentares ao
Orçamento do estado. A maioria governista, por sua vez, joga o jogo
quase sempre sem ser incomodada pela imprensa, de modo que a agenda da
Alesp pouco repercute na opinião pública. Quantas vezes você leu, ouviu
ou viu notícias de que os deputados paulistas investigaram uma suspeita
de superfaturamento em contratos do Metrô ou de abusos da Polícia
Militar – seja na forma violenta como age na USP, seja como persegue
pobres na periferia ou reprime movimentos sociais?
Falhas no
gerenciamento dos partidos da base, porém, levaram alguns parlamentares
do PTB – aliado dos tucanos no plano estadual desde sempre – a se
incomodar com o governo Geraldo Alckmin. Em consequência do desprestígio
e da redução de recursos repassados à Secretaria do Esporte, comandada
pelos petebistas, o maior cacique do partido, Campos Machado (PTB),
vinha em uma intensa investida contra o governo, cobrando constantemente
mais atenção às questões levantadas pelo partido.
Balaio de repasses
Essas faíscas no relacionamento causaram descontentamento, até que o
deputado Roque Barbiere (PTB), em seu sexto mandato, aborreceu-se e
chutou o balde. Disse ter ficado “de saco cheio” com tantas
irregularidades permeando o submundo da Alesp e, em uma entrevista ao
site do jornal Folha da Região, de Araçatuba, em meados de setembro,
criticou o funcionamento do sistema de emendas parlamentares. Afirmou
que de 25% a 30% dos deputados “vendem” a cota de emendas a que têm
direito todos os anos em troca de abocanhar parte dos recursos
liberados. E assegurou, sem revelar nomes, que o governo Alckmin foi
alertado sobre o fato.
O secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, deputado
licenciado Bruno Covas, confirmou a existência do esquema em entrevista
ao jornal O Estado de S. Paulo, na qual chegou a citar o caso de um
prefeito que ofereceu 10% de uma emenda no valor de R$ 50 mil, que
garantiu não ter aceitado. Semanas depois, Covas foi convidado a dar
explicações sobre o caso ao Conselho de Ética da Alesp. Mas não
apareceu. Apenas enviou carta em que afirma que seu relato ao jornal
seria uma situação hipotética e didática, usada em palestras, encontros e
conversas “para afastar qualquer tentativa de abordagem inadequada”. No
Ministério Público do Estado, o promotor Carlos Cardoso decidiu abrir
inquérito para apurar o escândalo. Para ele, não pareceu ser apenas um
exemplo didático.
No dia em que Bruno Covas deveria ter comparecido ao Conselho de
Ética, um levantamento divulgado em seu site indicava que, somente em
2010, ano eleitoral, seu gabinete havia conseguido o repasse de R$ 9,5
milhões em emendas solicitadas para diversos municípios paulistas. O
valor excede em quase cinco vezes o limite permitido a cada parlamentar –
R$ 2 milhões anuais. Covas, o deputado estadual mais votado em outubro,
com 239.150 votos, foi também o relator do Orçamento geral do estado
para 2011. Procurado, não falou com a reportagem. Desde a entrevista,
não traz explicações sobre o assunto. Por meio de sua assessoria,
justificou que o levantamento trouxe emendas de anos anteriores, pagas
somente em 2010, e outras obras eram pedidos do governo, e não dele. E
que deseja evitar o uso político do episódio.
Em 12 de outubro, o governo se responsabilizou por divulgar todos os
recursos oriundos de emendas no site da Secretaria da Fazenda. A relação
foi publicada em 4 de novembro. Nela, o presidente da Alesp, deputado
Barros Munhoz (PSDB), aparece como campeão de indicações, respondendo
pelo empenho de R$ 5,6 milhões somente no ano passado. Segundo o mesmo
documento, Bruno Covas tem R$ 2,2 milhões em emendas. No entanto, um
breve cruzamento de dados basta para demonstrar que essa lista oficial
não é confiável. O próprio site do deputado licenciado informara um
montante quase cinco vezes maior. Outro exemplo: tanto sua página
eletrônica como a da Prefeitura de Sales divulgam uma emenda no valor de
R$ 100 mil para a construção da Praça Floriano Tarsitano na cidade. Na
relação distribuída pelo governo o recurso nem aparece.
O deputado Major Olímpio (PDT) também atesta falhas no documento
oficial. Em 2009, ele propôs uma emenda no valor de R$ 210 mil para a
compra de equipamentos para a Santa Casa de Presidente Venceslau. Na
última hora, o recurso foi vetado, devolvido ao Tesouro estadual e mais
tarde apropriado por indicação do deputado Mauro Bragato (PSDB),
destinando a verba para a mesma unidade de saúde, agora a pretexto de
pagamento do 13º salário dos funcionários. Na relação do governo, porém,
o recurso ainda aparece como aquele indicado por Olímpio.
Emendas e indicações
Para explicar os exageros cometidos através das conhecidas emendas, o
governo do estado utilizou outra terminologia para classificar a verba.
O secretário da Casa Civil, Sidney Beraldo, assegurou que “emenda
parlamentar não existe em São Paulo, até agora é indicação”. Ele se
mostrou confiante no rigor do estado em não permitir que o limite seja
extrapolado. “Essas liberações são feitas com o maior critério, às vezes
dá a impressão de que o estado não tem controle de nada, a sociedade
não controla. Controla, sim”, defendeu o secretário.
Beraldo foi
desmentido alguns dias depois pelo líder do governo tucano na Assembleia
e colega de partido, deputado Samuel Moreira (PSDB): “Não tinha
diferenciação entre emendas e indicações, na verdade realmente se
misturavam dentro do governo, porque não eram separadas antecipadamente
no Orçamento”, contou. E afirmou, ainda, que o limite nunca deteve os
deputados. “As indicações eram feitas lá no governo, às vezes se
misturam porque o deputado, no decorrer do mandato, acaba fazendo outras
indicações.”
Para o líder do PT na Assembleia Legislativa, Enio Tatto, a falta de
organização do governo tem motivo. “É ‘bom’ ser desorganizado nesses
momentos. Essa confusão de indicação e de emenda, que no fundo são a
mesma coisa, é uma mercadoria de barganha para a hora de negociar
projetos e evitar fiscalizações”, descreveu o líder do PT.
Até o
início das denúncias, todas as emendas ou indicações de parlamentares
eram mantidas em sigilo pelo estado. Após o escândalo, o governo se
comprometeu, no dia 12 de outubro, a dar publicidade a todos os recursos
empenhados desde 2007. Quase um mês depois a relação foi divulgada, mas
traz irregularidades e esconde fatos. A oposição acredita que a demora
na divulgação foi para que o governo tivesse tempo de omitir dados para
diminuir a exposição de aliados.
‘Siamo tutti buona genti’
O esquema de venda de emendas ativou o Conselho de Ética da
Assembleia Legislativa paulista, que passou a se reunir em setembro em
torno do escândalo. O assunto, porém, foi sufocado pelos integrantes da
base aliada de Alckmin. Dos 18 requerimentos apresentados pelos
deputados da oposição, somente três foram aprovados, 11 foram rejeitados
e outros quatro nem chegaram a ser votados, graças à manobra do
petebista Campos Machado para encerrar precocemente os trabalhos do
conselho, no dia 27 de outubro.
Campos Machado protagonizou a operação abafa chefiada por Alckmin,
corroborada pelo presidente do conselho, Hélio Nishimoto (PSDB), e
executada pelos demais governistas no órgão. Machado propôs que fossem
encerradas quaisquer investigações pela Assembleia – inclusive a
possível instalação de uma CPI para aprofundar a apuração – e que fosse
encaminhado um relatório final ao Ministério Público, para que este
conduzisse eventual investigação.
O tal relatório, apresentado sete
dias depois, não continha informação relevante, pois não houve nenhuma
apuração por parte do Conselho de Ética, que não contou sequer com a
presença dos convidados a colaborar com o processo. Para o deputado João
Paulo Rillo (PT), suplente no conselho, o documento apresentado pelo
relator, José Bittencourt (PSD), “sai do nada e caminha cinicamente a
lugar nenhum”. Rillo acusou a base de Alckmin de transformar qualquer
possibilidade de apuração em pizza. “Para mim e para a população, o
resumo do Conselho de Ética seria a seguinte frase, que vou proferir em
italiano: siamo tutti buona genti, siamo tutti ladrone. É a dor que cada
um tem de ter, pois é como se comporta nesta casa.”
O deputado Luiz Claudio Marcolino (PT), um dos dois membros da
oposição a integrar o Conselho de Ética – completado por outros sete
situacionistas –, afirmou que o encerramento precoce dos trabalhos
agrava um quadro de falta de transparência. “Se tivesse compromisso com a
transparência, o governador Alckmin teria liberado seus secretários
para comparecer ao conselho e disponibilizado as informações requeridas
para os esclarecimentos.” Marcolino ressaltou que uma CPI permitiria
apurar melhor e encaminhar mais informações ao Ministério Público. “Não
podemos aceitar que o conselho não cumpra com uma de suas funções, que é
dar satisfação à sociedade, uma vez que a denúncia atinge todos os
deputados.”
Momentos antes de a base de Alckmin sepultar o assunto, afirmações do
deputado Major Olímpio mantiveram a lama em evidência e acrescentaram
capítulos ao escândalo. O pedetista mencionou seu colega de bancada
Rogério Nogueira como um beneficiário do sistema de emendas. E apontou,
ainda, uma personagem, presidente do Centro Cultural Educacional Santa
Tereza, do bairro paulistano de Campo Grande, que poderia testemunhar
vários casos de assédio por parte de parlamentares, com a oferta de
recursos para sua ONG, na forma de emendas, em troca de comissões .
No mesmo dia em que o conselho encerrou os trabalhos, cerca de 500
manifestantes foram à Assembleia para pressionar os parlamentares a dar
continuidade à investigação. A oposição concentra esforços para alcançar
as 32 assinaturas necessárias para instalar uma CPI para investigar o
escândalo – até o fechamento desta edição, faltavam duas. “A CPI terá
poder de convocar, apurar, detalhar e colocar às claras todas as
denúncias”, disse o deputado petista Carlos Grana. Entretanto, o tucano
Barros Munhoz não pensa em São Paulo como seus colegas tucanos no
Congresso Nacional, sempre ávidos por uma comissão: “Em CPI, no Brasil,
mais ninguém acredita. É conversa mole, para enganar”, desdenhou o
presidente a Assembleia Legislativa do maior estado da Federação.
Colaborou Tatiana Melim
Como funcionam as emendas
Emendas
parlamentares, chamadas tecnicamente pelo governo de indicações, são
fatias do orçamento geral do estado que podem ser direcionadas para fins
apontados pelos deputados. O mecanismo torna legítima a solicitação
dessas fatias para, em tese, atender a uma demanda da base eleitoral do
parlamentar. Assim, quando o estado elabora sua peça orçamentária, deve
levar em conta que parte dela será destinada a essas indicações – que
podem somar no máximo R$ 2 milhões anuais por deputado.
O problema é
que desde que esse mecanismo foi criado no estado, em 2006, os deputados
que compõem a oposição cobram um reparo na lei, de modo que todo o
processo, a partir da indicação pelo deputado até o uso efetivo da verba
na outra ponta, seja transparente. Os governadores sempre vetaram esse
procedimento. Devido a pressões, sobretudo após as recentes denúncias, o
Executivo resolveu ceder. A partir de 2011, toda emenda indicada para o
ano seguinte deve constar previamente no Orçamento, com informações
sobre valor, objeto, local de destinação. Após a polêmica, aliás, muitos
deputados, da base e da oposição, passaram a defender o fim das emendas
parlamentares.
Transparência não é o forte da Alesp. A sociedade não
tem acesso sequer a dados sobre a gestão da casa, como gastos com
pessoal, fornecedores e despesas dos gabinetes, por exemplo. Na
contramão do projeto de lei federal recentemente aprovado para assegurar
o acesso público a informações, a mesa diretora da Casa, presidida por
Barros Munhoz, baixou um dispositivo para manter a caixa-preta fechada,
criando empecilhos burocráticos para dificultar, retardar ou
inviabilizar o atendimento a solicitações de informação. Afinal, se dá
para complicar, para que simplificar?
Líder comunitária tucana descreve o esquema
A líder comunitária Tereza Barbosa, de 59 anos, coordena uma
instituição que atende crianças no bairro Campo Grande, na zona sul da
capital. Ela confirmou a denúncia do deputado Major Olímpio à reportagem
e detalhou o esquema. “Entrei em vários gabinetes e eles diziam assim:
‘Olha, eu dou o dinheiro para a senhora, mas a senhora me devolve a
metade, para uma entidade minha, que não tem documentação’”.
Sem revelar nomes, ela ainda descreveu outra conversa. “Um prefeito
me contou uma vez que eles dão a verba para a prefeitura, mas quem
contrata as empresas para fazer a obra é o próprio deputado, e a
construtora passa os 40% para ele. Por isso que a gente vê toda hora
essas obras malfeitas. Uma vez fui reclamar com uma construtora da
Cidade Ademar e o dono me falou: ‘Senhora, a gente não pode fazer nada
com material de primeira, porque a gente precisa devolver o dinheiro que
chega pra gente’.”
Dona Terezinha não revela nomes por medo de sofrer represálias. Mas
dá pistas. “Existe esquema em vários partidos, quase todos ali, do
partido do Alckmin e de aliados, PSDB, PTB, PDT. Eu não cheguei a ir no
PT, porque sou uma pessoa que foi sempre apaixonada pelo PSDB”, disse.
Por experiência própria, afirma que Roque Barbiere falou a verdade. “Ele
não mentiu, não. Só acho que a porcentagem é maior do que ele disse. Eu
colocaria que uns 40% a 45% dos deputados vendem emenda.”
A líder comunitária confirmou que iria ao Conselho de Ética caso
fosse convidada. Como a apuração por meio do conselho já estava
sepultada, o promotor Carlos Cardoso quer ouvi-la. “Vou ouvir a dona
Terezinha com toda a discrição possível, deixá-la muito à vontade para o
que eventualmente tenha de concreto para relatar, e a partir desse
relato vou verificar o que podemos fazer”, observou. Sobre o temor dela
de identificar nomes, Cardoso contou que trabalhou durante sete anos no
programa de proteção a testemunhas e vítimas ameaçadas e assegurou que
saberá como lidar com o caso.
“Deus vai fazer aparecer os culpados, e isso vai servir de exemplo
para os 50% que não são culpados. Eu estou entregando tudo isso para
Deus”, disse Terezinha.
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