Da Carta Capital
A decisão de ocupar o prédio administrativo da reitoria no dia 1º
criou uma polêmica sobre a validade ou não do ato. Isso porque a mesa da
assembleia já havia decretado seu fim quando um grupo composto
sobretudo de membros dos Movimentos Negação da Negação (MNN), LER-QI
(Liga Estratégia Revolucionária – Quara Internacional) e Partido da
Causa Operária (PCO) decidiram pela ocupação. Ao mesmo tempo, alguns
alunos dizem que a mesa da Assembleia do dia 1º, que culminou com o ato,
foi alvo de manobra.
Dividido em tribos, movimento estudantil enfrenta radicalismos
O coro “Ocupa! Ocupa!” contrapunha-se ao “Senta!Senta”, que tentava
amainar o ímpeto de ocupação, na Assembleia Geral dos estudantes da USP
do dia 1º de novembro, que decidiu encerrar a ocupação da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e terminou com um grupo de
alunos na reitoria da Universidade. Os gritos de guerra refletiam os
sentimentos conflitantes entre os participantes do fórum, com
aproximadamente mil pessoas. E que, quase uma semana depois, ainda
fornece pistas sobre o complexo mosaico que é a maior universidade do
país.
No dia 27 de outubro, a autuação de três estudantes da FFLCH por consumo de maconha
iniciou um movimento de protestos contra a Polícia Militar na faculdade
e, depois de uso de força de ambas as partes, a ocupação da
administração da própria faculdade. No dia 1º, o movimento se mudou para
a Administração Central. Na
manha desta terça-feira 8 a Tropa de Choque da Polícia Militar entrou
na universidade e executou a reintegração de posse decretada pela
Justiça, desocupando o prédio e prendendo cerca de 70 estudantes.
Dos cerca de 89 mil alunos, a grande maioria divide seu tempo entre
estudos, estágio e cursos de línguas. A despolitização é geral, ao
contrário do que sugere a imagem do “estudante da USP” estereotipado nas
últimas semanas. Dentre os ativos no movimento estudantil, há tanto
uma minoria afeita a gestos radicais, como é o caso dos três grupos que
encampam a ocupação na reitoria, estudantes ditos “independentes”, cuja
atuação ocorre sobretudo nos diversos centros acadêmicos das unidades, e
militantes de partidos de alguma imersão na política “real”, mas tidos
na sociedade como grupos de extrema-esquerda – entre eles, PSOL e PSTU
são os mais expressivos.
Esse enfrentamento entre forças do próprio movimento estudantil é
permeado pela questão da Polícia Militar no Campus e pela legalização da
maconha. Nesse quesito, a divergência ocorre com a ala mais à direita,
menos organizada em relação a movimentos e partidos, mas que soube
preparar um protesto de cerca de 300 pessoas pedindo a presença da
Polícia na terça-feira 1º – e que tem tido vertiginoso crescimento nos
últimos anos.
O sociólogo Carlos Henrique Metidieri Menegozzo, especialista em
movimento estudantil, tenta explicar o surgimento de tantas divergências
no mesmo ambiente. “A Universidade deixou de ser um espaço de convívio
e de troca de experiência”, afirma. Segundo ele, um dos fatores é que,
ao longo das últimas décadas, o ensino tornou-se mais técnico, houve uma
desvalorização progressiva de cursos de áreas mais filosóficas e a
comunidade universitária tornou-se diluída, fragmentada. Isso se reflete
na sociabilidade dos estudantes. “O processo hoje é de formação de
guetos dentro da universidade”, diz. “São diversas tribos universitárias,
que se diferenciam culturalmente, criando um problema de diálogo”,
aponta.
No Facebook, trava-se outra batalha entre as diversas facções dos
estudantes. Um cartaz com 1527 compartilhamentos circulava pela rede
intitulada “Dois tipos de alunos da USP” com fotos dos protestos a favor
da PM e os dizeres “O primeiro tipo estuda, trabalha, defende a lei,
quer segurança na USP, agem democraticamente e não têm medo de mostrar
seus rostos (sic)” e fotos dos alunos da ocupação e a frase “O segundo
tipo de alunos raramente estuda, não trabalham, desrespeitam a lei,
defendem traficantes, impõem sua vontade de maneira não democrática e
escondem seus rostos da mesma forma que os criminosos (sic)”. Outro,
dizia “Eu não fumo maconha e sou contra a PM no Campus”.
Além da fragmentação e falta de diálogo, existe também a emergência
de movimentos radicais para os dois extremos. São processos distintos,
explica Menegozzo. Os da esquerda, na definição sociológica, são em
parte resultantes de uma ideologia do descondicionamento de classe,
“surgida quando o estudante é desobrigado de criar condições para seu
próprio sustento”. Nesse caso, o estudante universitário, em sua maior
parte de classe média e relativamente dependente dos pais, tem a
impressão de que pode tudo.
“O aluno imagina que pode assumir um comportamento político desligado
de condições materiais e de interesses de sua classe origem”, comenta o
especialista. Essa ideologia, diz, é a base da construção de políticas
muito extremadas, que não conseguem perceber certas limitações objetivas
impostas ao avanço de suas lutas.
Já a direita, segundo Menegozzo, é reflexo da expressão de um
movimento da classe média de maneira geral e que influencia o
comportamento estudantil. “Com o governo Lula, há uma mudança no
posicionamento das classes”, afirma. Enquanto segmentos da classe
trabalhadora ascenderam a um status de classe média (a “Classe C”) e a
classe rica foi favorecida pelas políticas econômicas, a “velha” classe
média teve uma sensação relativa de perda de status e poder. O
crescimento do pensamento conservador neste setor foi, portanto, uma
reação a esse sentimento de “queda”. O movimento estudantil reproduz
essa polarização, afirma o especialista. São exemplos disso as
declarações contra as cotas raciais para o ensino superior, os
movimentos contra nordestinos, entre outros.
Outro ponto destacado pelo pesquisador é a falta de diálogo entre a
reitoria e os alunos. “O fato de a instituição estar fechada para o
debate leva a uma certa polarização de posições”, comenta. Na mesma
linha, a “grife” das humanas da instituição, como José Geraldo Souto
Maior, da Faculdade de Direito, Vladimir Safatle, da Filosofia e Raquel
Rolnik, da Arquitetura, manifesta-se contra o que chamam de
autoritarismo da reitoria.
“A atual reitoria tem dificuldades de dialogar com todos os setores
da comunidade acadêmica”, escreveu Safatle. “Há um enorme ‘déficit’
democrático na Universidade de São Paulo que de um tempo pra cá a
comunidade acadêmica, integrada por professores, alunos e servidores,
tem pretendido pôr em debate”, defendeu Souto Maior. Rolnik aliou esse
debate também à falta de mobilidade espacial no campus como um dos
fatores de insegurança no campus – que está no cerce, portanto, da
discussão sobre o policiamento no local. “O modelo urbanístico do
campus, segregado, unifuncional, com densidade de ocupação baixíssima e
com mobilidade baseada no automóvel é o mais inseguro dos modelos
urbanísticos, porque tem enormes espaços vazios, sem circulação de
pessoas, mal iluminados e abandonados durante várias horas do dia e da
noite”.
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